segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Federico, o marinheiro

Minha avó mudava de comportamento: tinha alguns dias que ela acordava feliz, risonha, cantando, com energia, colocava água nas plantas, dava de comer às galinhas, e pegava Emílio no colo, o beijava e o chamava de “meu guri”. Eu olhava para minha avó beijando o galo no bico, ele se eriçava todo, mexia o rabo de penas, como se fosse um cão. Emílio fechava os olhos e se deixava acariciar. Pensei que a loucura tinha-se apoderado de todos, menos de Júlia que iluminava o dia quando aparecia na porta, com seu sorriso espontâneo e feliz. Com freqüência ela dormia na casa da minha avó.

Para mim, os sinais de loucura coletiva eram claros, eu escutava vozes sem parar e gritos agudos que não conseguia identificar; minha avó com seus murmúrios estranhos, que às vezes pareciam cantos tribais de morte e guerra, ou cantos de ninar, além de suas mudanças drásticas de humor; Emílio negando-se como galo e querendo ser outro bicho: ora um gato, ora um cachorro. Até agora não consegui entender esse comportamento de Emílio, mas que talvez explique seu triste fim anos depois.

Júlia como sempre mastigava chicletes e eu, como um terneiro, ruminava seus beijos. Ela dormia na sala numa cama que minha avó improvisara. Quando a casa ficava no escuro, e minha avó dormia, ela ia para minha cama, e me beijava sem chiclete. A minha avó tossia e Júlia ficava imóvel. Eu tentava inutilmente segurar minha respiração e o coração dela era um redemoinho. Em silêncio, Júlia guardava na minha boca seus beijos. Nessas noites eu não sonhava com Alicia.

Outros dias, minha avó afundava numa tristeza inexplicável. A sua tristeza era tão enorme que me invadia e contagiava tudo. Nesses dias, a mangueira se recusava, como uma menina mimada, a oferecer suas mangas. Apesar do vento de janeiro, nenhuma de suas folhas se movia. Eu ficava surpreso e até pensava que se tratava de alguma bruxaria, o tronco e os galhos da mangueira tremiam, e até poderia jurar que dela saiam aqueles gritos desesperados que eu ouvia. E para arrematar, justamente nesses dias, Júlia não aparecia. Emílio ficava deitado num canto do quintal, e apenas se movia, não comia nada, permanecia de olhos fechados, imóvel. As minhocas pareciam felizes, com certeza estranhavam o comportamento esquisito de Emílio.

Minha avó, sentada na sala, olhava o relógio velho. Depois, parecia se distrair, olhando para uma boneca que dançava com o vento que entrava pela janela. Era uma bonequinha de porcelana que meu tio Federico tinha trazido da Índia. Federico era o irmão mais velho do meu pai. Minha avó contava que Federico tinha se tornado marinheiro e mostrava o desenho de um barco pintado de vermelho e preto, que o próprio Federico tinha feito. O pai de Federico também se chamava Federico e tinha sido morto na Guerra de Mena em 1912. Minha avó falava com emoção de Federico-pai, mas o fazia somente quando meu avô não estava por perto. Eu me sentava junto dela e a ouvia o dia inteiro contar as histórias de Federico, o marinheiro. Minha avó se acalmava e voltava a murmurar, desta vez como se fosse uma música infantil. Na parede, o barco vermelho e preto sulcava mares azuis.

domingo, 14 de novembro de 2010

As estrelas, as mangas e o galo

Emílio tinha a desfaçatez de entrar na casa sem pedir licença, justamente no momento em que Júlia me dava seu chiclete. Ficava olhando para mim com ar de reprovação e parecia balançar a cabeça como dizendo “que espectáculo!”. As tardes se repetiam. Nunca uma repetição foi tão desfrutada por mim, como essas tardes em que Júlia, generosa, oferecia o chiclete mais macio e saboroso que já provei. Eu já tinha abandonado a poltrona velha do fundo do quintal. Depois do almoço, minha avó e minha prima tomavam café e conversavam. Eu me tornava invisível aos olhos da minha avó. Júlia me olhava sem me olhar e se deleitava sabendo que eu tinha caído na sua armadilha. Seguindo o ritual, minha avó ia para a cozinha e entre murmúrios e canções, ela lavava panelas e pratos. Júlia saia para a porta da casa e se espreguiçava. Depois, sem fazer barulho, caminhava para minha cama onde, como sempre, eu fingia dormir. Eu nem abria os olhos, apenas a sentia chegar junto a mim. Sentava-se na minha cama e eu a imaginava sorrindo. Ela sabia que eu fingia dormir. Ela aproximava sua boca da minha. O chiclete era como um álibi entre seus dentes. Era nesse exato momento que Emílio entrava na casa. Eu ouvia o som metálico de suas patas que se confundia com os murmúrios da minha avó. Eu não abria os olhos, mas sabia que Emílio estava aí, observando, reprovando e consciente de que ele tinha perdido a função de me distrair do meu tormento. Júlia deixava cair na minha boca o seu chiclete e em troca ela pedia minha língua. O dia se fazia noite e várias estrelas, como se fossem mangas, caiam no quintal

sábado, 13 de novembro de 2010

Emílio, o galo e o chiclete de Júlia

O tempo passava calmamente e minha avó arrancava com resignação ou com alegria as folhas do calendário. Eu não entendia por que ela comemorava cada fim de mês, de forma diferente: como uma grande vitória ou como uma derrota silenciosa. Só fui entender isso muito tempo depois. O quintal da casa da minha avó era meu refúgio. Em janeiro, o quintal ficava cheio de mangas vermelhas e amarelas. Ainda hoje, o cheiro de manga me leva magicamente para esse quintal, e me faz viver de novo esses momentos de despreocupação e felicidade.

Com grande dificuldade, fui domesticando a saudade por Alicia. Com fome voraz, tentava devorar minhas entranhas, como aquele monstro do filme “Aliens”. Eu acordava assustado, inquieto, o coração explodindo, sentia as pulsações do sangue no pescoço. Muitas vezes, acordei imaginando Alicia, do lado da minha cama, me olhando, sorrindo. Lembro uma vez que em silêncio, suado, assustado, com uma mistura de medo e saudade, sai para o quintal. Ainda não amanhecia. Uma enorme lua fazia desaparecer as sombras que estavam grudadas nas coisas que minha avó guardava num canto. As sombras desapareciam, e as coisas brilhavam intensamente, como devolvendo à lua a luz generosa que ela, desinteressadamente, oferecia. Eu fiquei sentado no quintal até o nascer do dia. Acordei com o sol chicotando meus olhos. Na cozinha, minha avó preparava o café. Minha avó perguntou o que tinha acontecido, eu não disse nada, ela só me olhou com ar de reprovação.

Todas as tardes, como o único dono da poltrona velha que minha avó tinha largado no fundo do quintal, eu me distraia quase sempre, saboreando uma manga doce e pensando em Alicia. Não sei por que motivos, eu passei a associar Alicia com o sabor e a textura de uma manga suculenta e doce. Cada mordida na manga doce, fazia explodir minha saudade por Alicia. Fazia quase um ano que ela tinha partido.

Emílio, o galo mimado e esperto da minha avó, se aproximava sem me olhar, movendo-se devagar, para chamar minha atenção, suas penas brilhavam com o reflexo do sol. Fingindo ser um gato, se esfregava nas minhas pernas, depois ficava quieto. Desta vez, me encarando, me olhava fixamente. Eu olhava para ele com tédio, ele fazia isso repetidamente cada vez que me localizava no meu lugar favorito, no fundo do quintal da casa. Ele parecia saber que Alicia me atormentava. Pois fazia de tudo para me perturbar e interromper minha fixação doentia por Alicia. Emílio ciscava com paixão e triturava avidamente um grupo de minhocas, que reunido em torno a pedaços de folhas velhas, se deixava devorar passivamente. A natureza fazia cumprir seu impulso sem violência. Por um momento, Emílio tinha êxito no seu objetivo de me perturbar, e eu me afastava da minha idéia fixa. No chão, algumas minhocas olhavam desesperadas para Emílio, outras já resignadas, aguardavam sua vez de serem bicadas pelo galo.

Eu adormecia. O sol dava uma trégua e se escondia entre as nuvens. Às vezes caia uma chuva fina e refrescava. À noite a casa tremia, a minha avó gritava e corria para a rua. Eu ficava imóvel na minha cama, olhando para a imensa rachadura que um velho tremor tinha feito na parede. Minha avó ficava sentada lá fora, com o olhar perdido. Manágua é uma das cidades mais sísmicas do mundo. Todos os dias há uma série de tremores pequenos, fortes, fracos, longos, verticais, horizontais. Em Manágua há uma cultura sísmica que não existe em outras cidades do país. Qualquer tremor mais forte, se torna uma oportunidade para tirar as cadeiras das casas e sentar-se na calçada a conversar com os vizinhos.

Eu, particularmente, achava que sair de casa sempre que havia um tremor de terra, era um esforço inútil, um gasto de energia desnecessário. Às vezes, minha avó com desespero, me chamava, pedindo “pelo amor de Deus”, que eu saísse. Eu tinha a certeza adolescente que a casa nunca cairia. Depois, ela nunca mais me chamou, só me olhava impotente e preocupada. Os tremores seguiam e eu me divertia olhando o teto balançar. As paredes, já rachadas, faziam um barulho estranho. Eu fechava os olhos procurando sentir os sismos, tentando decifrá-los, identificando a duração, a intensidade. Imaginava Alicia sentindo os mesmo tremores que eu, e me sentia de alguma maneira, unido a ela, nesse momento sísmico. Eu tinha certeza que ela estava acordada, e talvez, olhando para o teto balançando, como eu. Depois eu lembrava que tinha ouvido a minha avó, falando com uma vizinha, que Alicia morava em outra cidade. Então, eu a imaginava dormindo tranquilamente, no seu quarto de paredes brancas, com o retrato de um anjinho na cabeceira da cama, e suas pernas numa posição indescritível, fora do lençol, como o melhor passe de balé, o mais maravilhoso quadro do mundo, jamais pintado por pintor algum.

Minha vida se resumia aos tremores de terra na noite, e as tardes no quintal da minha avó, pensando em Alicia. Apesar de que me sentia atormentado pela possibilidade de nunca ver de novo a Alicia, eu ficava em paz, na sombra da mangueira, com o sol que se deslizava entre suas folhas e a chuva fina que surpreendia de repente. Emílio, que com forte distúrbio de personalidade, fingia ser gato ou cachorro, menos o bicho que ele era, me distraia. Tudo isso me conduzia a uma espécie de sopor, a um estado delicioso entre a consciência e a inconsciência, a um limbo, onde por momentos, eu esquecia meu tormento. Sem outra coisa a fazer, eu me afundava na poltrona velha no fundo do quintal.

De olhos fechados, eu sentia as finíssimas gotas de chuva que atenuavam o calor e a poeira de janeiro. Fingindo dormir, eu surpreendia a minha avó me olhando intrigada, ela apenas balançava a cabeça. Chegava até a mim o cheiro da comida que ela preparava, podia identificar seus temperos preferidos: alho, cebola, pimentão, manteiga, suco de laranja e mel.

...até que minha tranqüilidade foi perturbada pela presença constante da minha prima Júlia, que chegava a visitar a minha avó. Júlia, tinha 17 anos, cabelos encaracolados, pele morena, olhos de amêndoas e uma boca carnuda e vermelha que mascava chicletes sem parar. Eu tinha 13 anos. Uma vez, veio atrevidamente me cumprimentar. Eu apenas murmurei um “oi”. Igual que Emílio, ficou me olhando fixamente. Como eu permaneci de olhos fechados, ela deu meia-volta e foi embora. A vi caminhar de volta para a casa, como dançando, de saia e blusa branca. Júlia aparecia quase todos os dias da semana e ficava para almoçar. Minha avó, animada conversava sem parar. Nunca entendi que conversavam tanto. Depois do almoço, eu deitava na rede pendurada no corredor. Julia e minha avó tomavam café e continuavam falando de mil coisas. Fingindo dormir, eu olhava para Júlia.

Uma tarde de fevereiro chovia muito. Júlia tinha chegado antes de meio-dia e almoçado conosco, como já era costume. Quando Júlia não aparecia, eu sentia sua falta, mas eu não perguntava para minha avó. Aquela tarde chuvosa eu fui me deitar na minha cama, depois de ler uma revista, adormeci. Acordei, e na minha cama, estava sentada Júlia, mastigando chicletes. Ficou me olhando docemente e me perguntou se queria chiclete, eu disse que sim. “Mas eu só tenho este aqui”- disse ela- mostrando entre os dentes aquele chiclete que mascava. Sem eu falar uma palavra, ela se aproximou de mim, encostou sua boca com a minha, e me deu o chiclete, e nos beijamos, senti sua língua buscar a minha. Na cozinha, minha avó continuava a murmurar baixinho. Desde então, todas as tardes eu mastigava o chiclete que Júlia me dava. Aquelas tardes eu não lembrava mais de Alicia, mas eu sabia que não podia me iludir pensando que ia esquecer suas pernas gordas.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Perdendo a virgindade

Perder a neutralidade é como perder a virgindade, a gente nunca a recupera. Virgindade não tem aqui um significado que se limita ao puramente sexual, mas à inocência, à ingenuidade da infância e suas coisas. É como ainda segurar a mão de Alicia, naquela imensa casa de praia, somente ela e eu na solidão da altura daquela amendoeira, que ficava no fundo do pátio, que nós escalávamos enquanto todos dormiam a sesta depois do almoço. E assim ficávamos sem falar nada, sem pensar nada, apenas olhando o oceano por cima dos tetos das casas. Alicia balançava suavemente suas pernas gordas que eu adorava. De quando em vez eu olhava para suas bochechas, seus cílios e sua boca de sabor a manga e morangos. Envolvia-nos o silêncio morno do verão. Às vezes o canto de um galo insone quebrava o silêncio que nos inundava. As folhas da amendoeira apenas se moviam. Alicia cantarolava. Primeiro baixinho, que era impossível decifrar que música ela cantava. Ela estava feliz, eu muito mais, e os dois olhávamos além do horizonte. No mar milhões de faíscas brilhantes pulavam alegremente. “Olha os pedacinhos de sol” – disse Alicia.