domingo, 17 de julho de 2011

De volta ao quintal

Depois da terrível morte de Emílio, minha avó entrou num estado de inconsciência. Parecia ter caído no fundo de um vulcão escuro. Ela se sentia culpada, a responsável do que tinha acontecido com o galo. E talvez fosse – pensei- ainda sentado na velha poltrona do quintal. Eu a culpava, apesar de não ter muita simpatia por Emílio. Ela, desde o início, tratou Emílio como se fosse um menino. O enchia de beijos e falava com ele. Emílio mimado dormia no colo dela. Ela o carregava e o colocava com delicadeza na cama, improvisada com trapos velhos, que ela mesma havia criado. Emílio tinha adquirido um olhar infantil, enternecedor, minha avó se derretia, e ficava eufórica, pegava-o no colo e dançava com ele. Emílio me olhava com satisfação e tentava descobrir no meu rosto, algum pingo de ciúmes. E para mim não havia dúvida, minha avó, na sua loucura, preferia o galo-menino que a mim, um adolescente despreocupado com tudo. E dono de uma única alegria: os beijos de Alicia e o chiclete de Júlia. O resto não importava e era assim mesmo que eu pensava naqueles dias.

Eu voltei ao quintal da casa de minha avó. Tinham passado vinte anos e parecia que o tempo não havia mudado nada naquela casa, em contraste com as mudanças visíveis na cidade. A cidade, o bairro, o país não eram os mesmos depois de tanto tempo. Só a casa de minha avó era a mesma. Tinha permanecido imóvel. Imersa num vácuo insolúvel, incolor. Imune ao efeito corrosivo do tempo. As mesmas coisas estavam no mesmo lugar. A xícara de alumínio, onde minha avó bebia o café forte, sem açúcar e sem leite, ainda estava pendurado no mesmo prego, na parede de madeira da cozinha. O café produzia um efeito milagroso na minha avó. Ela assoviava e parecia uma orquestra. A cadeira espaçosa, onde minha avó se sentava para fazer dormir a Emílio, ainda estava embaixo da mangueira. A poltrona velha onde eu acostumava passar minhas tardes continuava no fundo do quintal. Somente o pequeno rio que cruzava no fundo da casa parecia reduzido e triste, sem pedras que arrastar e sem o murmúrio que imitava os que minha avó fazia.

Minha avó tinha um comportamento oscilante, uma polaridade, que quando eu era adolescente, achava divertida. Eu me divertia com as oscilações de humor de minha avó, com seus murmúrios variantes. Hoje, vinte anos depois, sentado na mesma poltrona velha, no fundo do quintal, sinto uma mistura de ternura e remorso. Hoje enxergo minha avó com uma menina abandonada, solitária, buscando conforto nas lembranças distantes e num galo, que confundia com um menino. Apesar de tudo, a imagem que eu tinha de minha avó, era de uma mulher forte, sobrancelhas escuras e espessas, olhar arisco, desconfiado, triste, cabelos completamente brancos. Às vezes minha avó se sentava e se perdia, ficava indecifrável, longe, parecia que entrava em outra dimensão. Depois de vinte anos, olhando para as folhas da mangueira, descobri por fim que ela era eu.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O triste fim de Emílio

Voltei ao quintal da velha casa. A mangueira ainda estava ali e o vento novamente acariciava suas folhas. Ela respondia deixando suas mangas cair. Era fevereiro e a cidade estava em silêncio, abandonada. Eu fechava os olhos e ainda ouvia minha avó cantando na cozinha. Eu sentia seu olhar tenro, com certo ar de reprovação e compreensão.

Emílio não estava mais. Algumas de suas penas tinham ficado dispersas no quintal. De repente se amontoavam e faziam remoinhos brincalhões com o vento. Parecia que as penas tinham energia e vida próprias. Eu achava que era uma manifestação da presença do galo.

Olhei para a porta e desta vez vi Júlia, com o chiclete na boca, sorrindo e os olhos brilhantes, calça jeans e blusa branca. Era ela. Ela caminhou para mim para depositar o chiclete de sua boca na minha. Estremeci. Acordei. A casa estava vazia, sem vida. O céu azul, imenso, envolvia o telhado vermelho. Era domingo e os sinos da catedral tocavam com a mesma intensidade e vibração de antes.

Emílio tinha uma personalidade, esquisita, esquizofrênica. Mesmo sendo um galo, era visível que essa doença lhe provocava um grande sofrimento. Eu juro que um dia o vi chorar. Parecia ter um grito engasgado na garganta. O rosto retorcido de dor. Uma angustia existencial. Ele parecia estar mergulhado num abismo profundo e escuro.

Um dia, os vizinhos ficaram convencidos que Emílio (pobre dele!) era a personificação do mal-estar da vizinhança. Nessa época, tinha se espalhado uma onda de crimes, roubos e brigas violentas nas ruas. Cada dia amanhecia um cadáver nas esquinas. Muitas vezes, eu vi os corpos quase nus, com feridas profundas, os olhos fora das órbitas, o crânio partido, o sangue misturado com a poeira da rua. As casas eram assaltadas e famílias inteiras massacradas. Era necessário buscar um culpado. Quando o céu ficava vermelho, era quase certo que algo terrível ia acontecer aquela noite. Nessas noites, a música deixava de tocar, o bairro se afundava num silêncio sólido. As ruas ficavam mais escuras e as pessoas se fechavam em suas casas. De manhã, as pessoas abriam temerosas as portas de suas casas. Olhavam para a rua tentando localizar os cadáveres da vez.

Uma tarde, um grupo de vizinhos, armado de paus, cordas e facas, entrou na casa de minha avó. Minha avó apavorada parou de murmurar e ficou imóvel num canto. O bando gritava enfurecido. Mulheres e crianças berravam e os homens com os olhos inchados de sangue, espumavam como cães raivosos. No bairro, tinha se espalhado o rumor que na casa de minha avó, habitava a encarnação do mal. Os hábitos esquisitos de Emílio, sua personalidade dupla, a sua eterna negação de sua condição de galo, sua aspiração de ser outro. E não o que realmente era: uma ave de duas patas. O seu sonho de ser outro, foi sua perdição, seu pecado. Um pecado imperdoável nesses tempos de brutalidade e de violência, de transformações da vida comunitária. Emílio era hoje, o que em outras épocas, eram as bruxas: encarnação do demônio, a origem de todos os males. A lua parecia uma imensa gota de sangue. Emílio olhou serenamente para a multidão. Parecia saber seu destino e o aceitava com resignação e orgulho, sem luta, sem tentar fugir. Ele se sentia superior àquela multidão que rugia como uma manada de animais ferozes. E ele o era de verdade. Uma mão, que mais parecia uma garra de unhas sujas, agarrou Emílio pelo pescoço. A multidão delirava. Um vizinho me contou que Emílio acabou numa enorme panela. O bando de animais se acalmou devorando sua carne dura. Assim foi o triste fim de Emílio. Dias depois minha avó morreu de angústia e dor.