Alicia foi se tornando uma obsessão dolorida e de todas, a minha preferida. Uma obsessão que eu alimentava com minhas fantasias e desejos. Passei a ver Alicia em qualquer lugar, numa loja, no mercado, no prédio dos correios. Na imaginação, Alicia estava em toda parte. Em alguns momentos eu pensava que ela estaria disfarçada por aí, me observando, se deliciando com meu desespero. Da minha parte, eu buscava como reconhecê-la, descobri-la, desvendar seu disfarce. Quando ia com minha avó ao mercado público, enorme e barulhento, eu imaginava Alicia disfarçada de vendedora de frutas, de refresco, de pão. Eu tirava esse disfarce com minha imaginação, observava com desmedida atenção primeiro as pernas, depois as bocas. Em alguns casos, eu quase tinha certeza que eram as pernas e a boca de Alicia. Foi assim, uma manhã que minha avó foi ao mercado a comprar tecido, linhas e botões para fazer uma blusa para ela mesma. O mercado San Miguel se espalhava por várias quadras, como uma grande feira ao ar livre, onde se vendia de tudo, desde pequenos animais comestíveis como galinhas, iguanas, caranguejos, tatu, frutas, verduras, refrescos, grãos, produtos e utensílios dos mais diversos. Essa manhã fiquei obcecado com uma moça que vendia melões, de saia floreada e curta. Dava para ver sua gordas pernas, eu tive certeza que era Alicia, fiquei paralisado olhando para a moça enquanto minha avó perguntava os preços dos caranguejos. Minha avó vai fazer sopa de caranguejos – pensei. Eu detestava. Mas isso nesse instante não importava, minha missão era descobrir se detrás daqueles melões se escondia Alicia. As pernas eram quase as mesmas, a moça me olhou e me ofereceu seus melões. Eu nem respondi. Olhava fixamente para a moça, tentando descobrir nos seus olhos e na sua boca algum sinal, alguma vibração e desvendar o mistério de Alicia. Aquele dia voltei para casa e tive que beber minha frustração, junto com a sopa de caranguejo que minha avó fez. Não era Alicia.
Alicia era uma obsessão daquelas que a gente fica remoendo o dia todo. Uma idéia fixa. De manhã, ao meio dia, na hora de almoço eu ficava pensando em Alicia, nas suas pernas gordas e sua boca. Eu não sei como alguém pode ficar obsessivamente concentrado em duas partes do corpo de uma mulher, mas eu fiquei por muito tempo, e hoje ainda, busco as pernas de Alicia. Neste verão em Pelotas, tenho ido de bicicleta para o Laranjal de manhazinha, ou de tardezinha. Uma tarde dessas passou por mim uma mulher de bicicleta, jurei que era Alicia. As pernas gordas eram as mesmas, ela me ultrapassou - claro com umas pernas dessas- eu me justifiquei. Em vão, eu tentei alcançá-la. Ela perdeu-se no horizonte.
Meu pai morreu de repente, a minha avó decidiu abandonar primeiro a nossa casa, depois o bairro e por último a cidade. Isso me angustiou porque sabia que eu ficaria mais distante de Alicia, do porto do lago de onde uma vez ela partiu. De vez em quando eu ouvia minha avó comentar onde estava morando a família de Alicia. Para mim eram lugares desconhecidos, primeiro falou de um lugar chamado São Cristóvão, que ficava detrás dos morros, lá no fundo do lago, um lugar misterioso e que incitava (ou excitava) minha imaginação infantil. Até hoje nunca fui a esse lugar, que minha avó dizia ficar ao lado de um vulcão do mesmo nome e que de vez em quando explodia em lava. Esse cenário, o vulcão, o lago, os morros e o sol laranja ao entardecer povoaram meus sonhos acordados, quando eu fingia dormir e ouvia minha avó conversar com os vizinhos.
Um dia nos mudamos para Granada, a cidade gêmea de Pelotas. Fiquei desolado, e antes de partir, fui até a porta da casa de Alicia e os novos moradores estranharam minha presença. Ofereci resistência para subir no caminhão da mudança, até que minha avó, sem entender nada, perdeu a paciência. Olhei para atrás até o bairro desaparecer da minha vista. Chorei por dentro, em silêncio. Eu nunca tinha perdido a esperança que ela voltasse. E o ponto de retorno era o bairro. Se eu for embora do bairro, Alicia nunca vai me encontrar - pensava.
O tempo passava como nuvens acima da minha cabeça. Granada igual que Manágua fica na beira de um lago, assim como Pelotas que fica na beira de uma imensa lagoa. Lembro que eu me escapava de casa todas as manhãs rumo à beira do lago. Sentia o sol amarelo esquentando levemente meu rosto, o vento do lago desordenando meus cabelos. Nessa hora a praia estava quase vazia. No porto, o barco preparava-se para sair em direção a San Carlos, na fronteira sul. Eu seguia para o porto, adorava ver o movimento das pessoas com roupas coloridas, barulhentas, carregando porcos, galinhas, cestos cheios de frutas e verduras. Cada manhã era uma festa, uma comemoração, o barco balançava ritmicamente, inquieto, como impaciente para zarpar. As pessoas, também impacientes, quase se jogavam perigosamente dentro do barco. Eu de longe via os movimentos de pernas, braços pulando, quase brigando para ocupar um espaço no navio. Às vezes algumas pernas gordas me lembravam de Alicia, era só minha imaginação. Outras vezes pensei em abordar o navio e viajar, me sentia tão livre, poderia fazê-lo, quem sabe Alicia estaria morando em São Carlos, ao outro lado do lago. Em casa, minha avó conversava com seus fantasmas, em sonhos alucinados. Eu, em alucinações acordado.
Meu pai morreu de repente, a minha avó decidiu abandonar primeiro a nossa casa, depois o bairro e por último a cidade. Isso me angustiou porque sabia que eu ficaria mais distante de Alicia, do porto do lago de onde uma vez ela partiu. De vez em quando eu ouvia minha avó comentar onde estava morando a família de Alicia. Para mim eram lugares desconhecidos, primeiro falou de um lugar chamado São Cristóvão, que ficava detrás dos morros, lá no fundo do lago, um lugar misterioso e que incitava (ou excitava) minha imaginação infantil. Até hoje nunca fui a esse lugar, que minha avó dizia ficar ao lado de um vulcão do mesmo nome e que de vez em quando explodia em lava. Esse cenário, o vulcão, o lago, os morros e o sol laranja ao entardecer povoaram meus sonhos acordados, quando eu fingia dormir e ouvia minha avó conversar com os vizinhos.
Um dia nos mudamos para Granada, a cidade gêmea de Pelotas. Fiquei desolado, e antes de partir, fui até a porta da casa de Alicia e os novos moradores estranharam minha presença. Ofereci resistência para subir no caminhão da mudança, até que minha avó, sem entender nada, perdeu a paciência. Olhei para atrás até o bairro desaparecer da minha vista. Chorei por dentro, em silêncio. Eu nunca tinha perdido a esperança que ela voltasse. E o ponto de retorno era o bairro. Se eu for embora do bairro, Alicia nunca vai me encontrar - pensava.
O tempo passava como nuvens acima da minha cabeça. Granada igual que Manágua fica na beira de um lago, assim como Pelotas que fica na beira de uma imensa lagoa. Lembro que eu me escapava de casa todas as manhãs rumo à beira do lago. Sentia o sol amarelo esquentando levemente meu rosto, o vento do lago desordenando meus cabelos. Nessa hora a praia estava quase vazia. No porto, o barco preparava-se para sair em direção a San Carlos, na fronteira sul. Eu seguia para o porto, adorava ver o movimento das pessoas com roupas coloridas, barulhentas, carregando porcos, galinhas, cestos cheios de frutas e verduras. Cada manhã era uma festa, uma comemoração, o barco balançava ritmicamente, inquieto, como impaciente para zarpar. As pessoas, também impacientes, quase se jogavam perigosamente dentro do barco. Eu de longe via os movimentos de pernas, braços pulando, quase brigando para ocupar um espaço no navio. Às vezes algumas pernas gordas me lembravam de Alicia, era só minha imaginação. Outras vezes pensei em abordar o navio e viajar, me sentia tão livre, poderia fazê-lo, quem sabe Alicia estaria morando em São Carlos, ao outro lado do lago. Em casa, minha avó conversava com seus fantasmas, em sonhos alucinados. Eu, em alucinações acordado.