Voltei ao quintal da velha casa. A mangueira ainda estava ali e o vento novamente acariciava suas folhas. Ela respondia deixando suas mangas cair. Era fevereiro e a cidade estava em silêncio, abandonada. Eu fechava os olhos e ainda ouvia minha avó cantando na cozinha. Eu sentia seu olhar tenro, com certo ar de reprovação e compreensão.
Emílio não estava mais. Algumas de suas penas tinham ficado dispersas no quintal. De repente se amontoavam e faziam remoinhos brincalhões com o vento. Parecia que as penas tinham energia e vida próprias. Eu achava que era uma manifestação da presença do galo.
Olhei para a porta e desta vez vi Júlia, com o chiclete na boca, sorrindo e os olhos brilhantes, calça jeans e blusa branca. Era ela. Ela caminhou para mim para depositar o chiclete de sua boca na minha. Estremeci. Acordei. A casa estava vazia, sem vida. O céu azul, imenso, envolvia o telhado vermelho. Era domingo e os sinos da catedral tocavam com a mesma intensidade e vibração de antes.
Emílio tinha uma personalidade, esquisita, esquizofrênica. Mesmo sendo um galo, era visível que essa doença lhe provocava um grande sofrimento. Eu juro que um dia o vi chorar. Parecia ter um grito engasgado na garganta. O rosto retorcido de dor. Uma angustia existencial. Ele parecia estar mergulhado num abismo profundo e escuro.
Um dia, os vizinhos ficaram convencidos que Emílio (pobre dele!) era a personificação do mal-estar da vizinhança. Nessa época, tinha se espalhado uma onda de crimes, roubos e brigas violentas nas ruas. Cada dia amanhecia um cadáver nas esquinas. Muitas vezes, eu vi os corpos quase nus, com feridas profundas, os olhos fora das órbitas, o crânio partido, o sangue misturado com a poeira da rua. As casas eram assaltadas e famílias inteiras massacradas. Era necessário buscar um culpado. Quando o céu ficava vermelho, era quase certo que algo terrível ia acontecer aquela noite. Nessas noites, a música deixava de tocar, o bairro se afundava num silêncio sólido. As ruas ficavam mais escuras e as pessoas se fechavam em suas casas. De manhã, as pessoas abriam temerosas as portas de suas casas. Olhavam para a rua tentando localizar os cadáveres da vez.
Uma tarde, um grupo de vizinhos, armado de paus, cordas e facas, entrou na casa de minha avó. Minha avó apavorada parou de murmurar e ficou imóvel num canto. O bando gritava enfurecido. Mulheres e crianças berravam e os homens com os olhos inchados de sangue, espumavam como cães raivosos. No bairro, tinha se espalhado o rumor que na casa de minha avó, habitava a encarnação do mal. Os hábitos esquisitos de Emílio, sua personalidade dupla, a sua eterna negação de sua condição de galo, sua aspiração de ser outro. E não o que realmente era: uma ave de duas patas. O seu sonho de ser outro, foi sua perdição, seu pecado. Um pecado imperdoável nesses tempos de brutalidade e de violência, de transformações da vida comunitária. Emílio era hoje, o que em outras épocas, eram as bruxas: encarnação do demônio, a origem de todos os males. A lua parecia uma imensa gota de sangue. Emílio olhou serenamente para a multidão. Parecia saber seu destino e o aceitava com resignação e orgulho, sem luta, sem tentar fugir. Ele se sentia superior àquela multidão que rugia como uma manada de animais ferozes. E ele o era de verdade. Uma mão, que mais parecia uma garra de unhas sujas, agarrou Emílio pelo pescoço. A multidão delirava. Um vizinho me contou que Emílio acabou numa enorme panela. O bando de animais se acalmou devorando sua carne dura. Assim foi o triste fim de Emílio. Dias depois minha avó morreu de angústia e dor.