segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Lenin

Odiava seu nome. Foi o primeiro pensamento assim que acordou. Dormiu a noite toda, apesar do frio e do banco duro da praça. Estava nublado e tinha começado a chover. Um pássaro, com as penas molhadas, bicava a cabeça da estátua que havia no centro da praça. Em um banco ao lado do seu, um vulto, completamente coberto com um plástico, fazia barulhos estranhos. Ele estava começando a ficar molhado e a tremer de frio. Precisava encontrar urgente algo para se cobrir. Aproximou-se do vulto e sentiu um forte cheiro de álcool. Está bêbado, pensou. Não sentirá, portanto, frio se eu “pedir emprestado” o plástico. Num movimento rápido, como aquele que fazia o mágico do circo que ele tanto adorava quando era criança, tirou o plástico do outro, pegou sua mochila e rapidamente se distanciou. O outro nem se mexeu. A chuva tinha ficado mais forte. Acomodado na entrada do Teatro que estava sendo restaurado, cobriu-se com o plástico. Logo, sentiu fome. Na sacola tinha um pedaço de queijo. Dormiu. Acordou com o movimento dos carros e das gentes. Tinha parado de chover e o sol já esquentava. Ficou quieto, pensando no que ia fazer. De repente, sentiu que alguém puxava com força o plástico com que ainda se cobria. Era um homem velho, descalço, com os olhos vermelhos de álcool e raiva. Enfurecido e gritando palavras indecifráveis, se perdeu na rua com o plástico na mão. O relógio da torre verde do mercado marcava dez da manhã. “Pelotas” é um nome esquisito para uma cidade, pensou. Decidiu caminhar e percorreu as ruas ao redor da praça. Os vultos que estavam nos bancos tinham desaparecido e, rapidamente, um grupo de cuidadores de carros apareceu. Todos com coletes amarelos. Sentou-se na entrada de um prédio abandonado e ficou observando os movimentos deles. É um ofício, são profissionais, pensou. De fato, eram. Tinham ocupado o espaço público e eram até reconhecidos pelos proprietários de veículos. Havia entre eles, uma relação de confiança. Alguns até deixavam as chaves dos carros para que o veículo fosse lavado. Não, só por fora. Vai ficar limpinho, doutor! Fazia um mês que tinha sido expulso de casa. Seu pai o tinha acusado, injustamente, de ser vagabundo e maconheiro. Logo ele, que nunca tinha fumado nada. Pegou sua mochila e pulou, da janela de seu quarto, para a rua. Sentiu um medo estranho quando saía de sua pequena cidade, no meio da escuridão. Parecia que uns olhinhos misteriosos o observavam. As sombras das árvores pareciam “espíritus burlones”, como na canção de Nei Lisboa que tanto gostava. Aquela noite chovia. Mesmo molhado, se sentiu aliviado, tranquilo. Caminhou sem rumo. A cidade ia se perdendo nas suas costas, cada vez mais distante. Ao mesmo tempo, sentia tristeza e liberdade. E, agora, estava nessa cidade de nome estranho, molhado de chuva, com fome. Deviam trocar o nome da cidade; ele mesmo também pensou em trocar seu nome. Detestava-o. Sempre reclamara ao pai pela escolha. “Lenin”, como o dirigente soviético que idolatrava. O estômago lhe doía de fome e foi para o mercado central. Uma mulher que comprava erva mate lhe deu dois reais. Teve uma ideia brilhante e seus olhos se iluminaram com a descoberta. Voltou para a praça e tentou se tornar mais um cuidador de carro. Os outros cuidadores se aproximaram enfurecidos. Expulso, a tentativa de entrar nesse mercado de trabalho fracassou rapidinho. Percebeu que estava sendo observado. Sentado nos degraus do prédio da prefeitura, um homem de chinelo de dedos, fumando, de olhinhos brilhantes. Com um aceno de mão, o chamou. Ele se aproximou e o homem ofereceu um cigarro. Lenin recusou. Como, cara, você não fuma? Aposto que só fuma maconha. Negativo, disse Lenin. Escuta, cara, você tem que ser como eu. E mostrou sua carroça cheia de latinhas vazias de refrigerantes e cervejas. Sou, como se diz, um empreendedor. Você deveria fazer o mesmo. Sem patrão. Decidir teu horário de trabalho. Sou um autônomo! Também tentei ser cuidador de carro, mas há, como dizem os economistas, uma forte reserva de mercado. Ficou nublado. Vai chover de novo, disse o homem. Maldita cidade! Como você se chama? Ele hesitou para responder, mas, finalmente, disse: “Lenin”. Ao escutá-lo, o homem deixou escapar uma sonora gargalhada. Então, quer dizer que você é comunista? Lenin respirou fundo e respondeu que seu pai era comunista, e tinha desgraçado a vida dele com esse nome. A chuva começou de novo. Primeiro, gotinhas finas que, logo, foram se tornando enormes. Os dois homens ficaram pertinho, quase abraçados. Lenin sentiu o forte cheiro de cigarro. Agora você vai ver, as ruas ficarão alagadas, é uma maldição esta cidade. E, assim perto um do outro, ficaram conversando, até a chuva parar.