sábado, 22 de agosto de 2009

Dora e Stella



Quando menos esperava, chegaram as duas num único instante, como um impossível orgasmo simultâneo, gêmeas, distintas. Uma era igual ao sol de Abril sobre Granada, a outra como o brilho da Lua sobre a superfície calma da lagoa dos patos.
Num banco da universidade, eu meditava, perdendo o tempo, numa manhã entediante de julho. As folhas teciam no chão, um imenso tapete colorido. Assim, de repente, sem avisar, apareceram as duas. A Dora de blusa branca bordada e de calça jeans, de sandálias de couro, unhas pintadas de rosa, rabo de cavalo. A Estela, de saia azul, tênis brancos, boca vermelha. As duas se aproximaram, sorrindo, como dançando, me perguntaram não sei que coisa, e eu paralisado fiquei mudo. Ficaram tão perto de mim, que senti de golpe, um perfume que eu nunca tinha sentido antes, uma mistura de flores e frutas exóticas, de floresta, de chuva, de mar.
Perguntei seus nomes. Stela – disse uma delas. Estela - repeti. Não - disse ela, Stela, sem “E”. Meu pai adorava a famosa atriz italiana Stela C., por isso eu sou Stela sem “E”. Dora permanecia em silêncio, observando tudo, me absorvendo com seus imensos olhos negros, o vento soprava cúmplice. Não tinha mais ninguém nos espaçosos corredores da universidade. As duas estavam apaixonadas por mim - imaginei. Que sorte a minha, pensei que era um sonho, um doce sonho duplo, como aqueles sonhos que eu tinha de vez quando, sonhos de olhos abertos, mas não, era realidade, as duas estavam frente a mim, pertinho, deixando cair sobre meu rosto, sua respiração sincronizada. Eu sabia que inevitavelmente amaria as duas e elas a mim. Até pouco tempo atrás, eu estava solitário naquela universidade, sem rumo, sem nada, e em um piscar de olhos, diante de mim, duas mulheres surpreendentes, pertinho de mim, grudadas.
Eu tinha chegado há um ano à universidade, elas eram recém chegadas e deslumbradas com tudo, inclusive comigo - pensei. Eu era o típico universitário, cabeludo, de jeans e camiseta branca, de tênis e óculos escuros. Desta vez, o mundo era perfeito.
A Dora preocupada com os problemas da mente humana iniciou o curso de psicologia, Stela apaixonada por pintura fazia Artes e letras. Eu, sem muita convicção, continuei fazendo jornalismo.
Um dia, cheias de felicidade me comunicaram que tinham conseguido uma casa linda, na estrada que leva para o mar, onde poderíamos morar os três. Um mês depois, já estávamos instalados. Todas as manhãs a Dora cuidava das plantas e flores, tinha um carinho muito especial pelas violetas. A Stella, que tinha adicionado mais um “l” a seu nome, pintava paisagens extraordinárias. Eu descobri o paraíso, a vida era bela. Acordávamos cedo e eu fazia o café na cafeteira italiana, presente do pai de Stella. Depois, deitado na rede, lia Tchekhov.
Tudo era perfeito, mas um dia o mundo começou a desabar. Eu continuei fazendo café, mas Stella não pintava mais e nem Dora cuidava do jardim. As flores e plantas murcharam. Uma manhã de outubro me acordaram. Ainda meio dormido vi as duas vestidas de jeans e jaquetas, com as mochilas prontas. Disseram-me que iam embora e para meu bem, não diriam para onde, que mandariam notícias. Fiquei arrasado, meu paraíso se afundou. O país estava convulsionado. Tinha explodido a guerra e as aulas foram suspensas. Continuei fazendo café e lendo Tchekhov na rede. Ligava o rádio e escutava as notícias de uma guerra que eu não compreendia. Passaram as semanas e não recebi nenhuma notícia delas. Três meses depois, no rádio anunciaram a vitória da revolução. Demorei a descobrir que estava ocorrendo uma revolução no país. Corri para a praça da revolução onde a multidão explodia em canções e agitava alegremente bandeiras vermelhas. Voltei para casa com a esperança de encontrar a Dora e Stella, mas o tempo passou e nada delas aparecer. As aulas reiniciaram e eu consegui terminar meu curso de jornalismo, me mudei. Passei um tempo buscando emprego. Quando voltava da rua, cansado, ouvia Bob Marley e pensava em Dora e Stella. As duas gostavam especialmente de “Three little birds”, ainda me parece vê-las dançando e cantando. No dia seguinte, como quase todas as manhãs, saí a buscar emprego. No mesmo bairro onde eu morava, tinha uma casa de madeira, pintada de branco, com uma sigla PRT, e um anúncio: Precisa-se de jornalista. Era o que eu mais desejava no mundo. Na verdade, a segunda coisa que eu mais desejava. A primeira era encontrar Dora e Stella. Eu amava as duas, nem uma mais que a outra. As duas por igual. Entrei tímido na casa, na sala, me recebeu um homem magro, com um bigode incipiente, chamado Molotov. Expliquei que eu estava interessado no anúncio. Fiquei mais de uma hora respondendo às perguntas mais estranhas do mundo. Por fim, e para minha alegria, começaria a trabalhar no dia seguinte. Apesar do salário minúsculo, eu estava feliz, era meu primeiro emprego. Sabia que trabalharia em um pequeno partido de esquerda, mesmo eu não sendo militante, fui me envolvendo com as matérias que escrevia. Entrevistei dirigentes operários, representantes do movimento estudantil, lideres comunitários. Nesse momento, nos anos 80, tinha uma ditadura em El Salvador e escrevi uma matéria exigindo a ruptura de relações diplomáticas do novo governo revolucionário com a ditadura daquele país. Eu não estava convencido da eficácia dessa consigna, mesmo assim me esforcei e gostei como ficou a matéria. Outra matéria que escrevi foi sobre a invasão russa ao Afeganistão, pesquisei muito para mostrar que aquela invasão militar era imperialista e que perseguia a dominação de um povo, nada tinha de revolucionária. Assim fui garantindo matérias para “O Socialista” nome do semanário. Era uma correria, eu fazia de tripas coração para poder garantir sua publicação. Apesar de tudo isso, o semanário foi se tornado incômodo para as novas autoridades revolucionárias. Eu fui nomeado editor. Um dia recebemos uma carta da Secretaria de Meios de Comunicação do governo, nos citando urgente. Quando cheguei à sede do partido, Molotov tinha cara de preocupação. “Como Editor do semanário, você terá que ir” - me disse. Isso eu já imaginava. Ao dia seguinte, fui à Secretaria de comunicação. Fiquei sentado esperando mais de duas horas, ainda bem que tinha levado Tchekhov. Uma secretária me chamou mencionando meu nome e me chamando de editor do “O Socialista”, sem esconder a ironia. Entrei na sala onde me aguardava a secretária de Meios de Comunicação do governo revolucionário. Pediu-me para sentar, o que fiz sem deixar de olhar para aquela mulher bonita, de uniforme verde-oliva e de imensos olhos negros, estranhamente familiares. Ficamos uns minutos em silêncio. Ela finalmente disse, com uma voz enérgica: “Você não pode continuar publicando esse semanário”. Nesse instante, um turbilhão arrasou minha alma quando descobri que aquela mulher era Dora. O mundo desabou de novo, não voltei à sede do partido e voltei para o banco solitário da universidade. No chão, as folhas formavam um imenso tapete colorido e ainda era a mesma manhã entediante de julho.

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