domingo, 11 de outubro de 2009

Eu também salgo a caminar



Sentiu a saudade como um golpe agudo, como um redemoinho, sem inicio nem fim. Outras vezes já tinha lhe acontecido. De repente, via-se só na imensidão do seu quarto. Muitas vezes pensou que o mal só aparecia nos dias frios e nublados, mas depois descobriu que a saudade podia aparecer num dia de sol, num domingo de ruas vazias.
A saudade é um mal, ele sabia disso, é como uma lepra que se estende dolorosa. Que se inicia como um ponto insignificante, imperceptível, indolor. Durante muitos anos, esse ponto pequeno, quase invisível, permaneceu num lugar da sua pele, estendendo-se, arrastando-se mudando de lugar. Um dia aparecia no braço, outro dia no lado direito do seu rosto, perto do sinal de nascença. Pensou que não ia suportar enxergar aquela saudade como uma enorme mancha, uma pinta gigantesca, abrangendo seus braços, suas pernas, seu peito. Quando olhava no espelho só enxergava aquela mancha escura e pesada que o obrigava a manter os olhos quase fechados. Era a saudade. Mas depois se recuperava. A saudade imensa, como uma pedra de granito sólida, desaparecia, se reduzia àquele pequeno ponto inicial de fácil coexistência.
Olhou para ela, que nua na cama em desordem, ainda dormia. Mas era imaginação, ou talvez recordação. Não sabia direito. Sua mente confusa lhe pregava uma peça ou várias. A mulher nua se transformava como em Kafka, num enorme bicho estranho, que movia seu ventre, para desaparecer logo. Teve medo da doença que destrói a memória e a lucidez. Estranhamente as antigas lembranças eram nítidas na sua mente. Viu-se sozinho, sentado na escuridão da casa da sua mãe. Era capaz de ouvir a pesada roda do jipe militar triturando as pequenas pedras da rua empoeirada. Com o rádio na mão, esperava ansioso a meia-noite. Nessa hora as estações de rádio da cidade saiam do ar e entrava a proibida radio Havana. Agora podia ouvir Mercedes Sosa cantar “Salgo a caminar por la cintura cosmica del sur”. Depois, abraçado a um travesseiro, dormia tranqüilo até que os galos no pátio cantassem.

Nenhum comentário: