quinta-feira, 25 de março de 2010

A Partida I

O clima ia mudando lá fora e eu não percebia. Dentro de casa o tempo permanecia imóvel. O mundo girava em torno de uma idéia fixa com formato de boca carnuda e pernas gordas. De quando em vez, eu escutava gritos e barulhos estranhos que vinham da rua. Eu não me importava com esses gritos que depois desapareciam. E tudo ficava igual: as coisas envolvidas pelo silêncio. Mas de repente os gritos voltavam e irrompiam com frequência as noites e os dias. O tempo passava imperceptível. Eu olhava no espelho as mudanças no meu rosto e minha avó continuava com seus murmúrios incompressíveis, longos, curtos, desesperados, alegres, de festa, de morte.
Uma manhã eu percebi que o murmúrio de minha avó estava diferente, não parecia mais com o som produzido pelas pedras finas trazidas pelo rio. Era um barulho distinto, como o coro desafinado de um bando de cigarras. Algo estava mudando e eu não sabia o que era. Antes do almoço, enquanto eu lia Cem anos de solidão, esticado na minha cama, minha avó apareceu de repente no meu quarto: olhando-me fixamente, com aquele olhar que envolvia todos os detalhes do universo, ela disse energicamente: Esta semana voltamos para a capital. Era uma ordem de general travando seu último combate. Fiquei mudo, surpreso, não sabia que ela estava maquinando a idéia de voltar para Manágua. Agora sei que ela, igual que os elefantes, estava retornando para morrer. Parece que ela sentia a morte rondando. Voltamos para a capital. Deixamos Granada numa manhã cinzenta e triste de sábado. O caminhão da mudança parecia mais cheio de coisas. A minha avó gostava de juntar coisas diminutas, coloridas, de dourado brilhante. A cidade se cobriu de um nevoeiro estranho, de despedida dolorida. Mas não era uma partida definitiva, eu sabia que voltaria como de fato fiz anos depois

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