sexta-feira, 2 de abril de 2010

Santana

Santana era outro dos personagens da pensão. Cara de índio, com um chapéu de palha enfiado na cabeça, sempre lendo a bíblia num canto da sala, só se levantava da cadeira ao grito de dona Francisca: A comida está pronta! O barulho costumeiro da sala repleta de gente parava bruscamente. Todos interrompiam o que estavam fazendo: jogando baralho ou contando piadas. Santana fechava a bíblia, olhava para todos, e se levantava pesadamente rumo à mesa. Sentava e não conversava com ninguém, com os olhos fixos no prato de comida. Todos corriam para a mesa e comiam vorazmente. No centro da mesa uma imensa panela de ferro cheia de coxas de frango. Em outra panela de alumínio uma montanha de arroz branco e mais uma bacia de abóboras em mel, milho, e uma jarra gigantesca de suco de limão ou laranja. Minha avó parava com seus murmúrios e com olhos de felicidade sentava-se à mesa e comia como um passarinho, devorando lentamente a fruta mais suculenta.
Um dia Santana foi ao banheiro, deixou o livro na cadeira, mas colocou o chapéu de palha por cima, cobrindo a Bíblia. Curioso, como qualquer menino, esperei que ele se perdesse no corredor, para descobrir o livro que ele guardava e lia com tanto cuidado. O livro estava forrado com uma capa de papel amarelo, já suja, nela estava escrito cuidadosamente a mão, com caneta preta, as palavras: “A Sagrada Bíblia”. Abri o livro com meus dedos trêmulos e descobri que tinha outra capa vermelha, com estranhos símbolos de um amarelo brilhante. Eu consegui ler antes que Santana voltasse do banheiro. Um novo título de letras brancas contrastava com o fundo vermelho da capa. O título era "O Manifesto Comunista", fiquei desnorteado, incapaz de perceber a dimensão da minha descoberta. Consegui ler a segunda página do livro e fiquei apaixonado pelo que li: “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, opressores e oprimidos têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada...” Fiquei muito curioso e de repente uma aura de mistério envolvia aquele homem de chapéu e com cara de índio. Cada ida ao banheiro do Santana, eu aproveitava para descobrir o verdadeiro título do livro que ele lia e que disfarçava com a mesma capa amarela suja e com o título escrito em caneta: A Sagrada Bíblia. Novos títulos coloridos apareciam: A Guerra civil na França; Estado e Revolução; A madre, de Gorki; A Náusea de Sartre. Muito tempo depois descobri que eram livros proibidos. Eu ficava observando Santana, concentrado, lendo e que só de quando em vez levantava seu olhar, para inspecionar o que estava ocorrendo ao redor. Depois eu esquecia Santana, quando Mercedes, a viúva de 28 anos me chamava para a cozinha. No meio do fervor das panelas, ela me apertava até me sufocar. Eu sentia sua respiração, sua boca me absorvendo, sua língua molhando meus lábios, e sorvendo minha língua. Aqueles beijos me amorteciam e estremeciam. Depois, ia para meu quarto, deitava na minha cama estreita, como uma maca de hospital e pensava em Alicia. Então eu percebia, que os beijos de Mercedes, nunca seriam como os de Alicia.