sábado, 13 de novembro de 2010

Emílio, o galo e o chiclete de Júlia

O tempo passava calmamente e minha avó arrancava com resignação ou com alegria as folhas do calendário. Eu não entendia por que ela comemorava cada fim de mês, de forma diferente: como uma grande vitória ou como uma derrota silenciosa. Só fui entender isso muito tempo depois. O quintal da casa da minha avó era meu refúgio. Em janeiro, o quintal ficava cheio de mangas vermelhas e amarelas. Ainda hoje, o cheiro de manga me leva magicamente para esse quintal, e me faz viver de novo esses momentos de despreocupação e felicidade.

Com grande dificuldade, fui domesticando a saudade por Alicia. Com fome voraz, tentava devorar minhas entranhas, como aquele monstro do filme “Aliens”. Eu acordava assustado, inquieto, o coração explodindo, sentia as pulsações do sangue no pescoço. Muitas vezes, acordei imaginando Alicia, do lado da minha cama, me olhando, sorrindo. Lembro uma vez que em silêncio, suado, assustado, com uma mistura de medo e saudade, sai para o quintal. Ainda não amanhecia. Uma enorme lua fazia desaparecer as sombras que estavam grudadas nas coisas que minha avó guardava num canto. As sombras desapareciam, e as coisas brilhavam intensamente, como devolvendo à lua a luz generosa que ela, desinteressadamente, oferecia. Eu fiquei sentado no quintal até o nascer do dia. Acordei com o sol chicotando meus olhos. Na cozinha, minha avó preparava o café. Minha avó perguntou o que tinha acontecido, eu não disse nada, ela só me olhou com ar de reprovação.

Todas as tardes, como o único dono da poltrona velha que minha avó tinha largado no fundo do quintal, eu me distraia quase sempre, saboreando uma manga doce e pensando em Alicia. Não sei por que motivos, eu passei a associar Alicia com o sabor e a textura de uma manga suculenta e doce. Cada mordida na manga doce, fazia explodir minha saudade por Alicia. Fazia quase um ano que ela tinha partido.

Emílio, o galo mimado e esperto da minha avó, se aproximava sem me olhar, movendo-se devagar, para chamar minha atenção, suas penas brilhavam com o reflexo do sol. Fingindo ser um gato, se esfregava nas minhas pernas, depois ficava quieto. Desta vez, me encarando, me olhava fixamente. Eu olhava para ele com tédio, ele fazia isso repetidamente cada vez que me localizava no meu lugar favorito, no fundo do quintal da casa. Ele parecia saber que Alicia me atormentava. Pois fazia de tudo para me perturbar e interromper minha fixação doentia por Alicia. Emílio ciscava com paixão e triturava avidamente um grupo de minhocas, que reunido em torno a pedaços de folhas velhas, se deixava devorar passivamente. A natureza fazia cumprir seu impulso sem violência. Por um momento, Emílio tinha êxito no seu objetivo de me perturbar, e eu me afastava da minha idéia fixa. No chão, algumas minhocas olhavam desesperadas para Emílio, outras já resignadas, aguardavam sua vez de serem bicadas pelo galo.

Eu adormecia. O sol dava uma trégua e se escondia entre as nuvens. Às vezes caia uma chuva fina e refrescava. À noite a casa tremia, a minha avó gritava e corria para a rua. Eu ficava imóvel na minha cama, olhando para a imensa rachadura que um velho tremor tinha feito na parede. Minha avó ficava sentada lá fora, com o olhar perdido. Manágua é uma das cidades mais sísmicas do mundo. Todos os dias há uma série de tremores pequenos, fortes, fracos, longos, verticais, horizontais. Em Manágua há uma cultura sísmica que não existe em outras cidades do país. Qualquer tremor mais forte, se torna uma oportunidade para tirar as cadeiras das casas e sentar-se na calçada a conversar com os vizinhos.

Eu, particularmente, achava que sair de casa sempre que havia um tremor de terra, era um esforço inútil, um gasto de energia desnecessário. Às vezes, minha avó com desespero, me chamava, pedindo “pelo amor de Deus”, que eu saísse. Eu tinha a certeza adolescente que a casa nunca cairia. Depois, ela nunca mais me chamou, só me olhava impotente e preocupada. Os tremores seguiam e eu me divertia olhando o teto balançar. As paredes, já rachadas, faziam um barulho estranho. Eu fechava os olhos procurando sentir os sismos, tentando decifrá-los, identificando a duração, a intensidade. Imaginava Alicia sentindo os mesmo tremores que eu, e me sentia de alguma maneira, unido a ela, nesse momento sísmico. Eu tinha certeza que ela estava acordada, e talvez, olhando para o teto balançando, como eu. Depois eu lembrava que tinha ouvido a minha avó, falando com uma vizinha, que Alicia morava em outra cidade. Então, eu a imaginava dormindo tranquilamente, no seu quarto de paredes brancas, com o retrato de um anjinho na cabeceira da cama, e suas pernas numa posição indescritível, fora do lençol, como o melhor passe de balé, o mais maravilhoso quadro do mundo, jamais pintado por pintor algum.

Minha vida se resumia aos tremores de terra na noite, e as tardes no quintal da minha avó, pensando em Alicia. Apesar de que me sentia atormentado pela possibilidade de nunca ver de novo a Alicia, eu ficava em paz, na sombra da mangueira, com o sol que se deslizava entre suas folhas e a chuva fina que surpreendia de repente. Emílio, que com forte distúrbio de personalidade, fingia ser gato ou cachorro, menos o bicho que ele era, me distraia. Tudo isso me conduzia a uma espécie de sopor, a um estado delicioso entre a consciência e a inconsciência, a um limbo, onde por momentos, eu esquecia meu tormento. Sem outra coisa a fazer, eu me afundava na poltrona velha no fundo do quintal.

De olhos fechados, eu sentia as finíssimas gotas de chuva que atenuavam o calor e a poeira de janeiro. Fingindo dormir, eu surpreendia a minha avó me olhando intrigada, ela apenas balançava a cabeça. Chegava até a mim o cheiro da comida que ela preparava, podia identificar seus temperos preferidos: alho, cebola, pimentão, manteiga, suco de laranja e mel.

...até que minha tranqüilidade foi perturbada pela presença constante da minha prima Júlia, que chegava a visitar a minha avó. Júlia, tinha 17 anos, cabelos encaracolados, pele morena, olhos de amêndoas e uma boca carnuda e vermelha que mascava chicletes sem parar. Eu tinha 13 anos. Uma vez, veio atrevidamente me cumprimentar. Eu apenas murmurei um “oi”. Igual que Emílio, ficou me olhando fixamente. Como eu permaneci de olhos fechados, ela deu meia-volta e foi embora. A vi caminhar de volta para a casa, como dançando, de saia e blusa branca. Júlia aparecia quase todos os dias da semana e ficava para almoçar. Minha avó, animada conversava sem parar. Nunca entendi que conversavam tanto. Depois do almoço, eu deitava na rede pendurada no corredor. Julia e minha avó tomavam café e continuavam falando de mil coisas. Fingindo dormir, eu olhava para Júlia.

Uma tarde de fevereiro chovia muito. Júlia tinha chegado antes de meio-dia e almoçado conosco, como já era costume. Quando Júlia não aparecia, eu sentia sua falta, mas eu não perguntava para minha avó. Aquela tarde chuvosa eu fui me deitar na minha cama, depois de ler uma revista, adormeci. Acordei, e na minha cama, estava sentada Júlia, mastigando chicletes. Ficou me olhando docemente e me perguntou se queria chiclete, eu disse que sim. “Mas eu só tenho este aqui”- disse ela- mostrando entre os dentes aquele chiclete que mascava. Sem eu falar uma palavra, ela se aproximou de mim, encostou sua boca com a minha, e me deu o chiclete, e nos beijamos, senti sua língua buscar a minha. Na cozinha, minha avó continuava a murmurar baixinho. Desde então, todas as tardes eu mastigava o chiclete que Júlia me dava. Aquelas tardes eu não lembrava mais de Alicia, mas eu sabia que não podia me iludir pensando que ia esquecer suas pernas gordas.

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