segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Lenin

Odiava seu nome. Foi o primeiro pensamento assim que acordou. Dormiu a noite toda, apesar do frio e do banco duro da praça. Estava nublado e tinha começado a chover. Um pássaro, com as penas molhadas, bicava a cabeça da estátua que havia no centro da praça. Em um banco ao lado do seu, um vulto, completamente coberto com um plástico, fazia barulhos estranhos. Ele estava começando a ficar molhado e a tremer de frio. Precisava encontrar urgente algo para se cobrir. Aproximou-se do vulto e sentiu um forte cheiro de álcool. Está bêbado, pensou. Não sentirá, portanto, frio se eu “pedir emprestado” o plástico. Num movimento rápido, como aquele que fazia o mágico do circo que ele tanto adorava quando era criança, tirou o plástico do outro, pegou sua mochila e rapidamente se distanciou. O outro nem se mexeu. A chuva tinha ficado mais forte. Acomodado na entrada do Teatro que estava sendo restaurado, cobriu-se com o plástico. Logo, sentiu fome. Na sacola tinha um pedaço de queijo. Dormiu. Acordou com o movimento dos carros e das gentes. Tinha parado de chover e o sol já esquentava. Ficou quieto, pensando no que ia fazer. De repente, sentiu que alguém puxava com força o plástico com que ainda se cobria. Era um homem velho, descalço, com os olhos vermelhos de álcool e raiva. Enfurecido e gritando palavras indecifráveis, se perdeu na rua com o plástico na mão. O relógio da torre verde do mercado marcava dez da manhã. “Pelotas” é um nome esquisito para uma cidade, pensou. Decidiu caminhar e percorreu as ruas ao redor da praça. Os vultos que estavam nos bancos tinham desaparecido e, rapidamente, um grupo de cuidadores de carros apareceu. Todos com coletes amarelos. Sentou-se na entrada de um prédio abandonado e ficou observando os movimentos deles. É um ofício, são profissionais, pensou. De fato, eram. Tinham ocupado o espaço público e eram até reconhecidos pelos proprietários de veículos. Havia entre eles, uma relação de confiança. Alguns até deixavam as chaves dos carros para que o veículo fosse lavado. Não, só por fora. Vai ficar limpinho, doutor! Fazia um mês que tinha sido expulso de casa. Seu pai o tinha acusado, injustamente, de ser vagabundo e maconheiro. Logo ele, que nunca tinha fumado nada. Pegou sua mochila e pulou, da janela de seu quarto, para a rua. Sentiu um medo estranho quando saía de sua pequena cidade, no meio da escuridão. Parecia que uns olhinhos misteriosos o observavam. As sombras das árvores pareciam “espíritus burlones”, como na canção de Nei Lisboa que tanto gostava. Aquela noite chovia. Mesmo molhado, se sentiu aliviado, tranquilo. Caminhou sem rumo. A cidade ia se perdendo nas suas costas, cada vez mais distante. Ao mesmo tempo, sentia tristeza e liberdade. E, agora, estava nessa cidade de nome estranho, molhado de chuva, com fome. Deviam trocar o nome da cidade; ele mesmo também pensou em trocar seu nome. Detestava-o. Sempre reclamara ao pai pela escolha. “Lenin”, como o dirigente soviético que idolatrava. O estômago lhe doía de fome e foi para o mercado central. Uma mulher que comprava erva mate lhe deu dois reais. Teve uma ideia brilhante e seus olhos se iluminaram com a descoberta. Voltou para a praça e tentou se tornar mais um cuidador de carro. Os outros cuidadores se aproximaram enfurecidos. Expulso, a tentativa de entrar nesse mercado de trabalho fracassou rapidinho. Percebeu que estava sendo observado. Sentado nos degraus do prédio da prefeitura, um homem de chinelo de dedos, fumando, de olhinhos brilhantes. Com um aceno de mão, o chamou. Ele se aproximou e o homem ofereceu um cigarro. Lenin recusou. Como, cara, você não fuma? Aposto que só fuma maconha. Negativo, disse Lenin. Escuta, cara, você tem que ser como eu. E mostrou sua carroça cheia de latinhas vazias de refrigerantes e cervejas. Sou, como se diz, um empreendedor. Você deveria fazer o mesmo. Sem patrão. Decidir teu horário de trabalho. Sou um autônomo! Também tentei ser cuidador de carro, mas há, como dizem os economistas, uma forte reserva de mercado. Ficou nublado. Vai chover de novo, disse o homem. Maldita cidade! Como você se chama? Ele hesitou para responder, mas, finalmente, disse: “Lenin”. Ao escutá-lo, o homem deixou escapar uma sonora gargalhada. Então, quer dizer que você é comunista? Lenin respirou fundo e respondeu que seu pai era comunista, e tinha desgraçado a vida dele com esse nome. A chuva começou de novo. Primeiro, gotinhas finas que, logo, foram se tornando enormes. Os dois homens ficaram pertinho, quase abraçados. Lenin sentiu o forte cheiro de cigarro. Agora você vai ver, as ruas ficarão alagadas, é uma maldição esta cidade. E, assim perto um do outro, ficaram conversando, até a chuva parar.

sábado, 18 de julho de 2015

Nuvens

Da janela o céu nublado parece tirar um sarro de mim: como dizendo, sou mais forte que o sol, consigo ocultá-lo. Sei que não é verdade, por mais escuras que as nuvens pareçam: você virá. Chegarás como sempre, abrindo as janelas e as portas, renovando o ar que em casa teima em ficar borboleteando, como borboletas sem asas, incessantes, voando em círculos,  me acariciando de forma incompleta, insuficiente. Acordo e abro as janelas, desta vez de verdade. Olho para a rua, uma mulher se defende da chuva fina com um guarda-chuva cor de rosa, na outra mão puxa um amplificador de som. Onde será a festa a esta hora? -  Pergunto e ninguém me escuta, a rua agora está vazia, o céu está nublado, as nuvens cinzentas apertadas, como barreira de jogadores num campo de futebol. E você não virá.

Julho 18 11h

terça-feira, 2 de abril de 2013

Desperdicio


La tarde de ayer fue un desperdicio
el sol moría de tedio y
las gaviotas desaparecían en la neblina.
La luna indecisa besaba tibiamente las nubes y
hacía frío.
Sólo porque tú no estabas

domingo, 27 de maio de 2012

Autoretrato

Gravei minha sombra numa árvore, penso que nesta foto encontra-se uma espécie de inversão do que a fotografia é, porque neste caso não é a luz que a imagem grava, mas é a sombra que o faz.

A volta

Voltei. Andei perdido no nevoeiro que de manhã envolve as ruas desta cidade e de todas, sobretudo em dias como hoje, de um inverno que se anuncia, que não chega, mas que virá. Eu me perdi em endereços equivocados, cruzei o lago, a linha férrea, naveguei e lutei contra seres imaginários e reais. Alicia se esfumava, eu quase a alcançava. Ela tinha se transformado no pior dos meus fantasmas, e no melhor de meus sonhos.
Cheguei em cidades desabitadas, abandonadas. Eu sempre voltava ao meu lugar de origem: o pátio da casa enorme de minha avó. A casa estava abandonada, cheia de teia-de-aranhas, as paredes sujas e tristes. Apesar disso eu escutava a voz da minha avó, seus cantos na cozinha, sua voz era tão real, tão diáfana que paralisava meus sentidos e meu tempo.
A cidade continuou tremendo como um bicho esquisito, voltei para a velha poltrona de onde eu jurava ter saído, mas parecia que nunca tinha me mexido nem sequer uns centímetros. A velha mangueira ainda me desafiava e Emílio parecia me olhar de algum canto, eu não o enxergava, mas tinha certeza que ele me espetava com seu olhar cínico.
Eu sabia que Alicia viria. Ao longe se escutavam os primeiros disparos da guerra sem fim. Na rua uma multidão saqueava um caminhão de cereais, na casa do lado, uma mulher paria.

domingo, 17 de julho de 2011

De volta ao quintal

Depois da terrível morte de Emílio, minha avó entrou num estado de inconsciência. Parecia ter caído no fundo de um vulcão escuro. Ela se sentia culpada, a responsável do que tinha acontecido com o galo. E talvez fosse – pensei- ainda sentado na velha poltrona do quintal. Eu a culpava, apesar de não ter muita simpatia por Emílio. Ela, desde o início, tratou Emílio como se fosse um menino. O enchia de beijos e falava com ele. Emílio mimado dormia no colo dela. Ela o carregava e o colocava com delicadeza na cama, improvisada com trapos velhos, que ela mesma havia criado. Emílio tinha adquirido um olhar infantil, enternecedor, minha avó se derretia, e ficava eufórica, pegava-o no colo e dançava com ele. Emílio me olhava com satisfação e tentava descobrir no meu rosto, algum pingo de ciúmes. E para mim não havia dúvida, minha avó, na sua loucura, preferia o galo-menino que a mim, um adolescente despreocupado com tudo. E dono de uma única alegria: os beijos de Alicia e o chiclete de Júlia. O resto não importava e era assim mesmo que eu pensava naqueles dias.

Eu voltei ao quintal da casa de minha avó. Tinham passado vinte anos e parecia que o tempo não havia mudado nada naquela casa, em contraste com as mudanças visíveis na cidade. A cidade, o bairro, o país não eram os mesmos depois de tanto tempo. Só a casa de minha avó era a mesma. Tinha permanecido imóvel. Imersa num vácuo insolúvel, incolor. Imune ao efeito corrosivo do tempo. As mesmas coisas estavam no mesmo lugar. A xícara de alumínio, onde minha avó bebia o café forte, sem açúcar e sem leite, ainda estava pendurado no mesmo prego, na parede de madeira da cozinha. O café produzia um efeito milagroso na minha avó. Ela assoviava e parecia uma orquestra. A cadeira espaçosa, onde minha avó se sentava para fazer dormir a Emílio, ainda estava embaixo da mangueira. A poltrona velha onde eu acostumava passar minhas tardes continuava no fundo do quintal. Somente o pequeno rio que cruzava no fundo da casa parecia reduzido e triste, sem pedras que arrastar e sem o murmúrio que imitava os que minha avó fazia.

Minha avó tinha um comportamento oscilante, uma polaridade, que quando eu era adolescente, achava divertida. Eu me divertia com as oscilações de humor de minha avó, com seus murmúrios variantes. Hoje, vinte anos depois, sentado na mesma poltrona velha, no fundo do quintal, sinto uma mistura de ternura e remorso. Hoje enxergo minha avó com uma menina abandonada, solitária, buscando conforto nas lembranças distantes e num galo, que confundia com um menino. Apesar de tudo, a imagem que eu tinha de minha avó, era de uma mulher forte, sobrancelhas escuras e espessas, olhar arisco, desconfiado, triste, cabelos completamente brancos. Às vezes minha avó se sentava e se perdia, ficava indecifrável, longe, parecia que entrava em outra dimensão. Depois de vinte anos, olhando para as folhas da mangueira, descobri por fim que ela era eu.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O triste fim de Emílio

Voltei ao quintal da velha casa. A mangueira ainda estava ali e o vento novamente acariciava suas folhas. Ela respondia deixando suas mangas cair. Era fevereiro e a cidade estava em silêncio, abandonada. Eu fechava os olhos e ainda ouvia minha avó cantando na cozinha. Eu sentia seu olhar tenro, com certo ar de reprovação e compreensão.

Emílio não estava mais. Algumas de suas penas tinham ficado dispersas no quintal. De repente se amontoavam e faziam remoinhos brincalhões com o vento. Parecia que as penas tinham energia e vida próprias. Eu achava que era uma manifestação da presença do galo.

Olhei para a porta e desta vez vi Júlia, com o chiclete na boca, sorrindo e os olhos brilhantes, calça jeans e blusa branca. Era ela. Ela caminhou para mim para depositar o chiclete de sua boca na minha. Estremeci. Acordei. A casa estava vazia, sem vida. O céu azul, imenso, envolvia o telhado vermelho. Era domingo e os sinos da catedral tocavam com a mesma intensidade e vibração de antes.

Emílio tinha uma personalidade, esquisita, esquizofrênica. Mesmo sendo um galo, era visível que essa doença lhe provocava um grande sofrimento. Eu juro que um dia o vi chorar. Parecia ter um grito engasgado na garganta. O rosto retorcido de dor. Uma angustia existencial. Ele parecia estar mergulhado num abismo profundo e escuro.

Um dia, os vizinhos ficaram convencidos que Emílio (pobre dele!) era a personificação do mal-estar da vizinhança. Nessa época, tinha se espalhado uma onda de crimes, roubos e brigas violentas nas ruas. Cada dia amanhecia um cadáver nas esquinas. Muitas vezes, eu vi os corpos quase nus, com feridas profundas, os olhos fora das órbitas, o crânio partido, o sangue misturado com a poeira da rua. As casas eram assaltadas e famílias inteiras massacradas. Era necessário buscar um culpado. Quando o céu ficava vermelho, era quase certo que algo terrível ia acontecer aquela noite. Nessas noites, a música deixava de tocar, o bairro se afundava num silêncio sólido. As ruas ficavam mais escuras e as pessoas se fechavam em suas casas. De manhã, as pessoas abriam temerosas as portas de suas casas. Olhavam para a rua tentando localizar os cadáveres da vez.

Uma tarde, um grupo de vizinhos, armado de paus, cordas e facas, entrou na casa de minha avó. Minha avó apavorada parou de murmurar e ficou imóvel num canto. O bando gritava enfurecido. Mulheres e crianças berravam e os homens com os olhos inchados de sangue, espumavam como cães raivosos. No bairro, tinha se espalhado o rumor que na casa de minha avó, habitava a encarnação do mal. Os hábitos esquisitos de Emílio, sua personalidade dupla, a sua eterna negação de sua condição de galo, sua aspiração de ser outro. E não o que realmente era: uma ave de duas patas. O seu sonho de ser outro, foi sua perdição, seu pecado. Um pecado imperdoável nesses tempos de brutalidade e de violência, de transformações da vida comunitária. Emílio era hoje, o que em outras épocas, eram as bruxas: encarnação do demônio, a origem de todos os males. A lua parecia uma imensa gota de sangue. Emílio olhou serenamente para a multidão. Parecia saber seu destino e o aceitava com resignação e orgulho, sem luta, sem tentar fugir. Ele se sentia superior àquela multidão que rugia como uma manada de animais ferozes. E ele o era de verdade. Uma mão, que mais parecia uma garra de unhas sujas, agarrou Emílio pelo pescoço. A multidão delirava. Um vizinho me contou que Emílio acabou numa enorme panela. O bando de animais se acalmou devorando sua carne dura. Assim foi o triste fim de Emílio. Dias depois minha avó morreu de angústia e dor.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Federico, o marinheiro

Minha avó mudava de comportamento: tinha alguns dias que ela acordava feliz, risonha, cantando, com energia, colocava água nas plantas, dava de comer às galinhas, e pegava Emílio no colo, o beijava e o chamava de “meu guri”. Eu olhava para minha avó beijando o galo no bico, ele se eriçava todo, mexia o rabo de penas, como se fosse um cão. Emílio fechava os olhos e se deixava acariciar. Pensei que a loucura tinha-se apoderado de todos, menos de Júlia que iluminava o dia quando aparecia na porta, com seu sorriso espontâneo e feliz. Com freqüência ela dormia na casa da minha avó.

Para mim, os sinais de loucura coletiva eram claros, eu escutava vozes sem parar e gritos agudos que não conseguia identificar; minha avó com seus murmúrios estranhos, que às vezes pareciam cantos tribais de morte e guerra, ou cantos de ninar, além de suas mudanças drásticas de humor; Emílio negando-se como galo e querendo ser outro bicho: ora um gato, ora um cachorro. Até agora não consegui entender esse comportamento de Emílio, mas que talvez explique seu triste fim anos depois.

Júlia como sempre mastigava chicletes e eu, como um terneiro, ruminava seus beijos. Ela dormia na sala numa cama que minha avó improvisara. Quando a casa ficava no escuro, e minha avó dormia, ela ia para minha cama, e me beijava sem chiclete. A minha avó tossia e Júlia ficava imóvel. Eu tentava inutilmente segurar minha respiração e o coração dela era um redemoinho. Em silêncio, Júlia guardava na minha boca seus beijos. Nessas noites eu não sonhava com Alicia.

Outros dias, minha avó afundava numa tristeza inexplicável. A sua tristeza era tão enorme que me invadia e contagiava tudo. Nesses dias, a mangueira se recusava, como uma menina mimada, a oferecer suas mangas. Apesar do vento de janeiro, nenhuma de suas folhas se movia. Eu ficava surpreso e até pensava que se tratava de alguma bruxaria, o tronco e os galhos da mangueira tremiam, e até poderia jurar que dela saiam aqueles gritos desesperados que eu ouvia. E para arrematar, justamente nesses dias, Júlia não aparecia. Emílio ficava deitado num canto do quintal, e apenas se movia, não comia nada, permanecia de olhos fechados, imóvel. As minhocas pareciam felizes, com certeza estranhavam o comportamento esquisito de Emílio.

Minha avó, sentada na sala, olhava o relógio velho. Depois, parecia se distrair, olhando para uma boneca que dançava com o vento que entrava pela janela. Era uma bonequinha de porcelana que meu tio Federico tinha trazido da Índia. Federico era o irmão mais velho do meu pai. Minha avó contava que Federico tinha se tornado marinheiro e mostrava o desenho de um barco pintado de vermelho e preto, que o próprio Federico tinha feito. O pai de Federico também se chamava Federico e tinha sido morto na Guerra de Mena em 1912. Minha avó falava com emoção de Federico-pai, mas o fazia somente quando meu avô não estava por perto. Eu me sentava junto dela e a ouvia o dia inteiro contar as histórias de Federico, o marinheiro. Minha avó se acalmava e voltava a murmurar, desta vez como se fosse uma música infantil. Na parede, o barco vermelho e preto sulcava mares azuis.

domingo, 14 de novembro de 2010

As estrelas, as mangas e o galo

Emílio tinha a desfaçatez de entrar na casa sem pedir licença, justamente no momento em que Júlia me dava seu chiclete. Ficava olhando para mim com ar de reprovação e parecia balançar a cabeça como dizendo “que espectáculo!”. As tardes se repetiam. Nunca uma repetição foi tão desfrutada por mim, como essas tardes em que Júlia, generosa, oferecia o chiclete mais macio e saboroso que já provei. Eu já tinha abandonado a poltrona velha do fundo do quintal. Depois do almoço, minha avó e minha prima tomavam café e conversavam. Eu me tornava invisível aos olhos da minha avó. Júlia me olhava sem me olhar e se deleitava sabendo que eu tinha caído na sua armadilha. Seguindo o ritual, minha avó ia para a cozinha e entre murmúrios e canções, ela lavava panelas e pratos. Júlia saia para a porta da casa e se espreguiçava. Depois, sem fazer barulho, caminhava para minha cama onde, como sempre, eu fingia dormir. Eu nem abria os olhos, apenas a sentia chegar junto a mim. Sentava-se na minha cama e eu a imaginava sorrindo. Ela sabia que eu fingia dormir. Ela aproximava sua boca da minha. O chiclete era como um álibi entre seus dentes. Era nesse exato momento que Emílio entrava na casa. Eu ouvia o som metálico de suas patas que se confundia com os murmúrios da minha avó. Eu não abria os olhos, mas sabia que Emílio estava aí, observando, reprovando e consciente de que ele tinha perdido a função de me distrair do meu tormento. Júlia deixava cair na minha boca o seu chiclete e em troca ela pedia minha língua. O dia se fazia noite e várias estrelas, como se fossem mangas, caiam no quintal

sábado, 13 de novembro de 2010

Emílio, o galo e o chiclete de Júlia

O tempo passava calmamente e minha avó arrancava com resignação ou com alegria as folhas do calendário. Eu não entendia por que ela comemorava cada fim de mês, de forma diferente: como uma grande vitória ou como uma derrota silenciosa. Só fui entender isso muito tempo depois. O quintal da casa da minha avó era meu refúgio. Em janeiro, o quintal ficava cheio de mangas vermelhas e amarelas. Ainda hoje, o cheiro de manga me leva magicamente para esse quintal, e me faz viver de novo esses momentos de despreocupação e felicidade.

Com grande dificuldade, fui domesticando a saudade por Alicia. Com fome voraz, tentava devorar minhas entranhas, como aquele monstro do filme “Aliens”. Eu acordava assustado, inquieto, o coração explodindo, sentia as pulsações do sangue no pescoço. Muitas vezes, acordei imaginando Alicia, do lado da minha cama, me olhando, sorrindo. Lembro uma vez que em silêncio, suado, assustado, com uma mistura de medo e saudade, sai para o quintal. Ainda não amanhecia. Uma enorme lua fazia desaparecer as sombras que estavam grudadas nas coisas que minha avó guardava num canto. As sombras desapareciam, e as coisas brilhavam intensamente, como devolvendo à lua a luz generosa que ela, desinteressadamente, oferecia. Eu fiquei sentado no quintal até o nascer do dia. Acordei com o sol chicotando meus olhos. Na cozinha, minha avó preparava o café. Minha avó perguntou o que tinha acontecido, eu não disse nada, ela só me olhou com ar de reprovação.

Todas as tardes, como o único dono da poltrona velha que minha avó tinha largado no fundo do quintal, eu me distraia quase sempre, saboreando uma manga doce e pensando em Alicia. Não sei por que motivos, eu passei a associar Alicia com o sabor e a textura de uma manga suculenta e doce. Cada mordida na manga doce, fazia explodir minha saudade por Alicia. Fazia quase um ano que ela tinha partido.

Emílio, o galo mimado e esperto da minha avó, se aproximava sem me olhar, movendo-se devagar, para chamar minha atenção, suas penas brilhavam com o reflexo do sol. Fingindo ser um gato, se esfregava nas minhas pernas, depois ficava quieto. Desta vez, me encarando, me olhava fixamente. Eu olhava para ele com tédio, ele fazia isso repetidamente cada vez que me localizava no meu lugar favorito, no fundo do quintal da casa. Ele parecia saber que Alicia me atormentava. Pois fazia de tudo para me perturbar e interromper minha fixação doentia por Alicia. Emílio ciscava com paixão e triturava avidamente um grupo de minhocas, que reunido em torno a pedaços de folhas velhas, se deixava devorar passivamente. A natureza fazia cumprir seu impulso sem violência. Por um momento, Emílio tinha êxito no seu objetivo de me perturbar, e eu me afastava da minha idéia fixa. No chão, algumas minhocas olhavam desesperadas para Emílio, outras já resignadas, aguardavam sua vez de serem bicadas pelo galo.

Eu adormecia. O sol dava uma trégua e se escondia entre as nuvens. Às vezes caia uma chuva fina e refrescava. À noite a casa tremia, a minha avó gritava e corria para a rua. Eu ficava imóvel na minha cama, olhando para a imensa rachadura que um velho tremor tinha feito na parede. Minha avó ficava sentada lá fora, com o olhar perdido. Manágua é uma das cidades mais sísmicas do mundo. Todos os dias há uma série de tremores pequenos, fortes, fracos, longos, verticais, horizontais. Em Manágua há uma cultura sísmica que não existe em outras cidades do país. Qualquer tremor mais forte, se torna uma oportunidade para tirar as cadeiras das casas e sentar-se na calçada a conversar com os vizinhos.

Eu, particularmente, achava que sair de casa sempre que havia um tremor de terra, era um esforço inútil, um gasto de energia desnecessário. Às vezes, minha avó com desespero, me chamava, pedindo “pelo amor de Deus”, que eu saísse. Eu tinha a certeza adolescente que a casa nunca cairia. Depois, ela nunca mais me chamou, só me olhava impotente e preocupada. Os tremores seguiam e eu me divertia olhando o teto balançar. As paredes, já rachadas, faziam um barulho estranho. Eu fechava os olhos procurando sentir os sismos, tentando decifrá-los, identificando a duração, a intensidade. Imaginava Alicia sentindo os mesmo tremores que eu, e me sentia de alguma maneira, unido a ela, nesse momento sísmico. Eu tinha certeza que ela estava acordada, e talvez, olhando para o teto balançando, como eu. Depois eu lembrava que tinha ouvido a minha avó, falando com uma vizinha, que Alicia morava em outra cidade. Então, eu a imaginava dormindo tranquilamente, no seu quarto de paredes brancas, com o retrato de um anjinho na cabeceira da cama, e suas pernas numa posição indescritível, fora do lençol, como o melhor passe de balé, o mais maravilhoso quadro do mundo, jamais pintado por pintor algum.

Minha vida se resumia aos tremores de terra na noite, e as tardes no quintal da minha avó, pensando em Alicia. Apesar de que me sentia atormentado pela possibilidade de nunca ver de novo a Alicia, eu ficava em paz, na sombra da mangueira, com o sol que se deslizava entre suas folhas e a chuva fina que surpreendia de repente. Emílio, que com forte distúrbio de personalidade, fingia ser gato ou cachorro, menos o bicho que ele era, me distraia. Tudo isso me conduzia a uma espécie de sopor, a um estado delicioso entre a consciência e a inconsciência, a um limbo, onde por momentos, eu esquecia meu tormento. Sem outra coisa a fazer, eu me afundava na poltrona velha no fundo do quintal.

De olhos fechados, eu sentia as finíssimas gotas de chuva que atenuavam o calor e a poeira de janeiro. Fingindo dormir, eu surpreendia a minha avó me olhando intrigada, ela apenas balançava a cabeça. Chegava até a mim o cheiro da comida que ela preparava, podia identificar seus temperos preferidos: alho, cebola, pimentão, manteiga, suco de laranja e mel.

...até que minha tranqüilidade foi perturbada pela presença constante da minha prima Júlia, que chegava a visitar a minha avó. Júlia, tinha 17 anos, cabelos encaracolados, pele morena, olhos de amêndoas e uma boca carnuda e vermelha que mascava chicletes sem parar. Eu tinha 13 anos. Uma vez, veio atrevidamente me cumprimentar. Eu apenas murmurei um “oi”. Igual que Emílio, ficou me olhando fixamente. Como eu permaneci de olhos fechados, ela deu meia-volta e foi embora. A vi caminhar de volta para a casa, como dançando, de saia e blusa branca. Júlia aparecia quase todos os dias da semana e ficava para almoçar. Minha avó, animada conversava sem parar. Nunca entendi que conversavam tanto. Depois do almoço, eu deitava na rede pendurada no corredor. Julia e minha avó tomavam café e continuavam falando de mil coisas. Fingindo dormir, eu olhava para Júlia.

Uma tarde de fevereiro chovia muito. Júlia tinha chegado antes de meio-dia e almoçado conosco, como já era costume. Quando Júlia não aparecia, eu sentia sua falta, mas eu não perguntava para minha avó. Aquela tarde chuvosa eu fui me deitar na minha cama, depois de ler uma revista, adormeci. Acordei, e na minha cama, estava sentada Júlia, mastigando chicletes. Ficou me olhando docemente e me perguntou se queria chiclete, eu disse que sim. “Mas eu só tenho este aqui”- disse ela- mostrando entre os dentes aquele chiclete que mascava. Sem eu falar uma palavra, ela se aproximou de mim, encostou sua boca com a minha, e me deu o chiclete, e nos beijamos, senti sua língua buscar a minha. Na cozinha, minha avó continuava a murmurar baixinho. Desde então, todas as tardes eu mastigava o chiclete que Júlia me dava. Aquelas tardes eu não lembrava mais de Alicia, mas eu sabia que não podia me iludir pensando que ia esquecer suas pernas gordas.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Perdendo a virgindade

Perder a neutralidade é como perder a virgindade, a gente nunca a recupera. Virgindade não tem aqui um significado que se limita ao puramente sexual, mas à inocência, à ingenuidade da infância e suas coisas. É como ainda segurar a mão de Alicia, naquela imensa casa de praia, somente ela e eu na solidão da altura daquela amendoeira, que ficava no fundo do pátio, que nós escalávamos enquanto todos dormiam a sesta depois do almoço. E assim ficávamos sem falar nada, sem pensar nada, apenas olhando o oceano por cima dos tetos das casas. Alicia balançava suavemente suas pernas gordas que eu adorava. De quando em vez eu olhava para suas bochechas, seus cílios e sua boca de sabor a manga e morangos. Envolvia-nos o silêncio morno do verão. Às vezes o canto de um galo insone quebrava o silêncio que nos inundava. As folhas da amendoeira apenas se moviam. Alicia cantarolava. Primeiro baixinho, que era impossível decifrar que música ela cantava. Ela estava feliz, eu muito mais, e os dois olhávamos além do horizonte. No mar milhões de faíscas brilhantes pulavam alegremente. “Olha os pedacinhos de sol” – disse Alicia.

sábado, 2 de outubro de 2010

terça-feira, 27 de julho de 2010

A inspiração

Sempre tive medo de perdê-la. Hoje acordei e pensei que ela estava escondida entre os grossos cobertores. Nada. Busquei embaixo da cama, na sala, detrás da estante de livros, entre as roupas penduradas na área de serviço: ela não estava. Pensei que ela estava brincando de esconde-esconde comigo e que de repente, apareceria me estremecendo com seus beijos, como ela acostuma fazer especialmente naqueles dias sem sol. Não foi assim e as horas ameaçaram estourar todos os relógios. Fui ficando preocupado. Ainda ontem, senti seu calor morno, sua respiração grudada em mim. Sei que às vezes ela fica de cara comigo e foge. Um dia fui encontrá-la na beira da lagoa. Peguei sua mão e a convenci a voltar. Ela parecia triste. Não foi fácil, ela relutou, mas veio comigo até minha casa. Ficou quieta. Deitou na cama e ficou olhando para o teto branco, como descobrindo figuras invisíveis. De repente se levantou, abriu todas as janelas, deixou o sol entrar. Olhou para mim e jurou que jamais me abandonaria.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Os ciclistas invisíveis

Pelotas é a cidade das bicicletas. Quem chega pela primeira vez na cidade, até estranha as bicicletas que inundam suas ruas. Bicicletas de todos os tipos cruzam a cidade: antigas, novas, monocromáticas, coloridas, sem cor, clássicas, pós-modernas. Uma em particular tem me chamado a atenção. Nela, o ciclista fica sentado, sem exagero nenhum, numa altura de quase dois metros. Um dia destes, eu fiquei observando esta singular bicicleta. Eu queria saber como ele fazia para descer da bicicleta quando, pelo movimento dos carros, era obrigado a parar. Então descobri sua estratégia: quando é obrigado a parar, se abraça ao poste de luz mais perto, e assim vai se abraçando de poste em poste numa estranha promiscuidade.
Apesar da quantidade de bicicletas na cidade, não existem ciclovias dignas desse nome. Há apenas simulações, pedaços de acostamentos disfarçados de ciclovias. As poucas “ciclovias” permanecem em estado deplorável. Por exemplo, a chamada ciclovia que se estende para a Praia do Laranjal está completamente descuidada: o mato come a faixa, e a faixa, cúmplice ou vítima se deixa comer; a areia invade furiosamente a pista. Trata-se de um perfeito simulacro de ciclovia onde os cadáveres de pequenos animais viram grandes obstáculos.
O pior é que as motos e as carroças a utilizam sem culpa nenhuma, afinal os ciclistas são praticamente invisíveis. Ao cair da tarde, voltando do Laranjal, uma motocicleta vinha voando, pela ciclovia, na minha direção. Tive que fazer sinais com minha mão para ser enxergado.
Os carros estacionam impunemente, obrigando o ciclista a sair perigosamente da ciclovia. Nas ruas de Pelotas, domina a lei do mais forte, que se impõe sobre pedestres e ciclistas.

sábado, 8 de maio de 2010

Los dos Manoeles



Cuando conocí Manoel de Barros, eterno niño brasileño, criador de memórias y de histórias insólitas, yo andaba enamorado del tiempo y de los ríos que seducen al mar. Manoel de Barros nació en Cuaiabá el 19 de diciembre de 1916. Hoy vive en Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Desde siempre se preocupó con las cosas des-importantes y descubrió que el poeta es capaz de mezclar todos los sentidos. Y fué comunista cuando joven. Cuando tenia 18 años escribió en una estatua: “Viva el comunismo” y la policía llegó a buscarlo a la pensión donde vivía. Ironicamente el primer libro que escribió lo salvó de la prisión. Cuando el policía, que llegó a buscarlo, leyó el título: “Nuestra señora de la obscuridad”!, lo dejó libre. Dejó de ser comunista cuando Luiz Carlos Prestes, después de salir de la cárcel, apoyó al gobierno de Getúlio Vargas que había entregado Olga Benário a los nazistas. Y Olga era la mujer de Prestes. No soportando el desengaño, Manoel se sentó en la acera y lloró. Se fué para el Pantanal y después al Perú y a Nueva York. Pero Manoel es poco conocido en América Latina. Una lástima. Las fronteras de las lenguas parecen cada vez más endurecidas. En Nueva York estudió pintura y cine. Es por eso que su poesía es alimentada por imágenes.
Manoel escribe a mano todos sus libros, esculpiendo cada letra, cada palabra sin hacer caso de cualquier convención gramatical, y apenas busca la simplicidad. Como él mismo dice, hay dos Manoeles: uno de sangre y el outro de palabras. El primero bebe água, el outro hace imagenes. Él se engaña con las palabras, y con las palabras engaña a los otros. El mundo de Manoel es de carne y letras. Es así Manoel.

Frases de Manoel:

“Pasaba los dias allí, quieto, entre las cosas menudas. Y me encanté”.
“La mejor forma que encontré para conocerme fué hacer lo contrário”
“La inércia es mi acción principal”
“Hay histórias tan verdaderas que a veces parecen que son inventadas”
“No necesito del fin para llegar”
“Del lugar donde estoy ya me fui”

“Que un hueso es más importante para un perro que un diamante. Y un diente de mono de la era terciária es más importante para los arqueólogos que la Torre Eifel. Que una muñeca de trapo que abre y cierra los ojitos azules en las manos de una niña es más importante que el Empire State Building. Que el culo de una hormiga es más importante para el poeta que una planta nuclear”.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Manoel de Barros

"Con pedazos de mí yo hago un ser atónito"

sábado, 24 de abril de 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Poema de chuva

Em dias assim, como este de hoje: nublado, com chuva, sem sol, sem sal, deveria ser proibido e ilegal sair de casa. Eu aproveitaria para redescobrir no teu corpo, os detalhes do universo: as estrelas de teus seios, o astro perto do teu calcanhar, o pequeno sol que alumbra teu centro, o vulcão que incendeia teu norte, o furacão que estremece teu sul. Eu iria de um pólo a outro e me arrastaria, como um anão sonolento, pela vastidão do teu território e recolheria com minha boca, cada fruto, cada folha, cada gota de tua chuva. Lá fora: o mundo se afogando e eu me deleitando nas tuas inundações.

Os universitários

Os gritos foram, desta vez, ensurdecedores, intermitentes, começavam baixinhos, iam se multiplicando até explodir em milhares de vozes. Minha avó olhava pela janela e murmurava: “são os universitários, são os universitários”. E ficava num canto tremendo, em silêncio, com os olhos cravados no piso de cimento. Um cheiro estranho, que soube depois que era gás lacrimogêneo, penetrou a sala. Vi minha avó chorar sem sequer piscar seus olhos. As lágrimas desciam pelos sulcos que o tempo tinha gravado no seu rosto. Hoje percebo, em toda sua dimensão, a sensação de abandono que, dessa vez e para sempre, dela tinha se apoderado.
A déspota mandou fechar todas as portas e janelas da casa. Olhei por uma fenda da parede de madeira e vi uma longa fila de estudantes gritando. As paredes dos prédios foram se enchendo de frases de todas as cores: “liberdade para os presos políticos” que estava escrito com um vermelho brilhante; “abaixo a ditadura” em letras de um azul intenso e profundo. Os gritos continuaram a noite toda. As portas e janelas continuaram fechadas. Ouvi explosões e mais gritos. Houve confusão na casa, alguns foram se esconder nos seus quartos, outros ficaram paralisados nas cadeiras. Minha avó continuava imóvel num canto. Pareceu-me ver Santana lendo a “bíblia”, mas foi uma miragem momentânea, a cadeira continuava vazia, esperando-o. Mercedes aproveitando a confusão me chamou desde seu quarto. Ela me esperava vestida somente de saia, os seios nus, eu olhei para seus seios e me pareceram duas montanhas macias, igual às duas montanhas quase gêmeas que há lá no horizonte do lago. Estendeu seus braços com o mesmo jeito de sempre, com um sorriso meigo e os olhos brilhando. Eu busquei refúgio nos seus seios. Os gritos e explosões foram se acalmando, pensei que era por causa da respiração ritmada de Mercedes e do seu coração eu ouvi, a mais bela das canções que eu ainda ouço.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Lo fatal - Rubén Darío

Dichoso es el árbol que es apenas sensitivo,
y más la piedra dura porque ésa ya no siente,
pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo,
ni mayor pesadumbre que la vida consciente.

Ser, y no saber nada, y ser sin rumbo cierto,
y el temor de haber sido y un futuro terror…
y el espanto seguro de estar mañana muerto,
y sufrir por la vida y por la sombra y por

lo que no conocemos y apenas sospechamos,
y la carne que tienta con sus frescos racimos,
y la tumba que aguarda con sus fúnebres ramos,
y no saber adónde vamos,
ni de dónde venimos…!

domingo, 18 de abril de 2010

Manoel de Barros

"Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem". Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem". Está no livro "Vozes da Origem", da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento."

Manoel de Barros

"Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira".

sábado, 17 de abril de 2010

MANOEL DE BARROS - O Livro sobre Nada

* Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
* Tudo que não invento é falso.
* Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
* Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
* É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
* Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.
* Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
* A inércia é o meu ato principal.
* Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
* O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
* A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
* Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
* Por pudor sou impuro.
* Não preciso do fim para chegar.
* De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra — Como um lápis numa península.
* Do lugar onde estou já fui embora.

sábado, 10 de abril de 2010

O milagre de um raio de luz

Santana sumia da pensão por largas temporadas. Ninguém percebia sua ausência. A estratégia dele, para passar desapercebido, era eficiente: ficar imóvel, lendo num canto da sala. As noites frescas do inverno convidavam a jogos de cartas. No inverno não fazia frio, apenas chovia muito, principalmente às noites. Eu gostava do barulho da chuva no telhado. Ramona era uma moça de vinte anos, que recém chegava à capital para estudar ciências contábeis. Era morena, com uma pinta perto da boca, olhos negros, sobrancelhas generosas, vestida quase sempre de uma saia deliciosamente curta. Eu adorava sua risada estridente e gostosa, sobretudo quando perdia e tinha que entregar seus lábios para o ganhador. Eu fazia trapaça e dava um jeito de ficar com todos os beijos que Ramona podia dar numa noite. Certo dia, Mercedes descobriu porque eu gostava muito de jogar cartas todas as noites. Ficou semanas sem falar comigo, até que de novo minhas idas à cozinha ficaram mais freqüentes. Mercedes me beijava apaixonadamente. Não joguei mais baralho com Ramona. Os gritos voltaram desta vez com mais força. Eram os mesmo gritos que eu tinha escutado antes. Mercedes me beijava no meio do cheiro de alecrim, orégano e alho que se levantava das panelas da sua mãe. Para mim, os beijos de Mercedes eram o único que importava nesse momento. Uma tarde, a casa estava insolitamente vazia, Mercedes me chamou para seu quarto. Deixei o que estava fazendo e fui rapidamente em busca dela. Abri a porta do quarto em penumbra. Apenas um raio fino de luz penetrava timidamente por uma fenda da parede de madeira. Senti o perfume dela. Ela estava nua e eu me aproximei. Ela me estendeu seus braços. Grudei meu rosto entre seus seios. E fiquei ali, meio adormecido na sua pele macia. Depois sua boca buscou a minha, enredou sua língua, vasculhando dúvidas e segredos. Minha alma flutuava no teto do quarto. Cai de repente no chão ao grito da déspota: “Mercedes!!! Vem me ajudar!!!” Dona Francisca tinha chegado do mercado com um monte de sacolas repletas de verduras e carne. Sai voando e fui me esconder no meu quarto, ainda com a visão de Mercedes nua, na minha cabeça. Por muito tempo fiquei agradecido àquele raio fino de luz, mas poderoso e que gravou em mim para sempre a imagem maravilhosa da primeira mulher nua.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Santana

Santana era outro dos personagens da pensão. Cara de índio, com um chapéu de palha enfiado na cabeça, sempre lendo a bíblia num canto da sala, só se levantava da cadeira ao grito de dona Francisca: A comida está pronta! O barulho costumeiro da sala repleta de gente parava bruscamente. Todos interrompiam o que estavam fazendo: jogando baralho ou contando piadas. Santana fechava a bíblia, olhava para todos, e se levantava pesadamente rumo à mesa. Sentava e não conversava com ninguém, com os olhos fixos no prato de comida. Todos corriam para a mesa e comiam vorazmente. No centro da mesa uma imensa panela de ferro cheia de coxas de frango. Em outra panela de alumínio uma montanha de arroz branco e mais uma bacia de abóboras em mel, milho, e uma jarra gigantesca de suco de limão ou laranja. Minha avó parava com seus murmúrios e com olhos de felicidade sentava-se à mesa e comia como um passarinho, devorando lentamente a fruta mais suculenta.
Um dia Santana foi ao banheiro, deixou o livro na cadeira, mas colocou o chapéu de palha por cima, cobrindo a Bíblia. Curioso, como qualquer menino, esperei que ele se perdesse no corredor, para descobrir o livro que ele guardava e lia com tanto cuidado. O livro estava forrado com uma capa de papel amarelo, já suja, nela estava escrito cuidadosamente a mão, com caneta preta, as palavras: “A Sagrada Bíblia”. Abri o livro com meus dedos trêmulos e descobri que tinha outra capa vermelha, com estranhos símbolos de um amarelo brilhante. Eu consegui ler antes que Santana voltasse do banheiro. Um novo título de letras brancas contrastava com o fundo vermelho da capa. O título era "O Manifesto Comunista", fiquei desnorteado, incapaz de perceber a dimensão da minha descoberta. Consegui ler a segunda página do livro e fiquei apaixonado pelo que li: “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, opressores e oprimidos têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada...” Fiquei muito curioso e de repente uma aura de mistério envolvia aquele homem de chapéu e com cara de índio. Cada ida ao banheiro do Santana, eu aproveitava para descobrir o verdadeiro título do livro que ele lia e que disfarçava com a mesma capa amarela suja e com o título escrito em caneta: A Sagrada Bíblia. Novos títulos coloridos apareciam: A Guerra civil na França; Estado e Revolução; A madre, de Gorki; A Náusea de Sartre. Muito tempo depois descobri que eram livros proibidos. Eu ficava observando Santana, concentrado, lendo e que só de quando em vez levantava seu olhar, para inspecionar o que estava ocorrendo ao redor. Depois eu esquecia Santana, quando Mercedes, a viúva de 28 anos me chamava para a cozinha. No meio do fervor das panelas, ela me apertava até me sufocar. Eu sentia sua respiração, sua boca me absorvendo, sua língua molhando meus lábios, e sorvendo minha língua. Aqueles beijos me amorteciam e estremeciam. Depois, ia para meu quarto, deitava na minha cama estreita, como uma maca de hospital e pensava em Alicia. Então eu percebia, que os beijos de Mercedes, nunca seriam como os de Alicia.