sábado, 14 de março de 2009

Na praça da revolução


Manágua - 20 de julho de 1979. Uma enorme multidão na praça central da capital. Nos rostos cansados, aparecia a esperança de um futuro melhor. As roupas coloridas refletiam a luz brilhante daquela manhã. Espalhadas por todos os cantos da praça, as pessoas, esperavam os discursos dos dirigentes até esse momento totalmente desconhecidos. As pessoas se penduravam nas árvores da praça e nas torres da velha Catedral.

Nos alto-falantes ouviam-se as músicas revolucionárias. Alguns dançavam. Outros buscavam no mar de gente, algum amigo ou parente. Garotos se abraçavam pela primeira vez depois de meses de guerra. Muitos outros ainda continuavam desaparecidos. Restos humanos permaneciam insepultos nos morros que circundam a capital.

A multidão gritava os nomes dos ausentes levantando suas fotos em cartazes improvisados. No meio da multidão eu lembrava do Chico. Ele acreditava na vitória. Mais do que eu. Mas ele não estava ali. Nunca mais estaria nem ali nem noutro lugar. Nunca mais o veria. No início de junho, poucos dias antes que a insurreição generalizada explodisse em Manágua foi capturado quando saia de uma reunião num bairro. Sempre o imaginei e ainda hoje o imagino deitado no chão do Jipe militar. Talvez esperando um descuido de seus captores para escapar como outras vezes. Lembro dele quando cheguei à universidade. Ele era presidente do Centro Universitário da Universidade Nacional (CUUN). Ele tinha 28 anos. Para mim, era um cara velho. O Jipe atravessou as ruas cheias de poeira do bairro. O levaram para trás de uma fábrica de tintas. O deitaram no chão. Um soldado disparou na sua nuca. E ficou ali mesmo por muito tempo. Lembrei também de Oscar que chamávamos de “El Negro”. Um cara sempre alegre. Brincalhão. Caiu em combate no ocidente do País na ladeira de um vulcão. Lembrei de Ulises que num assalto a um banco em Masaya foi morto porque sua arma travou. Quando ele ganhou as eleições para presidente da Associação de Estudantes da Universidade chegou em casa faceiro, onde sua mãe aflita o esperava.

O sacrifício do Chico, Oscar e Ulises parecia não ter sido em vão. Afinal Somoza tinha fugido três dias antes. Com ele fugiram os mais próximos, familiares e membros do círculo do poder que tinha controlado o País por mais de quatro décadas enquanto milhares de soldados fugiam como podiam. Na corrida desesperada Somoza levou os restos mortais do seu pai, o fundador da Ditadura.

No norte e no sul os soldados derrotados cruzavam as fronteiras. Outros capturados. A revolução era generosa e esses soldados que serviram durante muito tempo ao ditador não foram fuzilados. Outros, como o “Macho Negro”, não foram alcançados pela generosidade da revolução. O “Macho Negro”, um oficial do exército de Somoza, tinha se tornado o terror dos bairros orientais de Manágua. Capturou e torturou dezenas de jovens. Muitos destes rapazes foram tirados violentamente das suas próprias casas e assassinados na periferia da capital. O “Macho Negro” foi capturado em Masaya e antes que a guerra finalizasse foi fuzilado em público. Lembro a imagem dele caindo de lado. Os olhos fechados. De regata branca. Calça caqui e de chinelos. Para mim, essa imagem divulgada pelos jornais posteriormente, simbolizava o final de uma etapa da história que pouco tempo antes parecia impossível. Fuzilar o “macho negro” era tão improvável. Afinal nem se sabia ao certo se ele existia mesmo. Como um fantasma parecia estar em todos os pontos da capital.

Os combatentes continuavam entrando na praça, em ônibus e caminhões levantando os fuzis. A multidão gritava de júbilo. O vento que vinha do lago refrescava os rostos cansados. As árvores da praça balanceavam numa dança improvisada soltando sobre o chão um manto de flores vermelhas e amarelas. Os sinos da catedral tocavam alegremente.

Tantas vezes cruzei ainda menino, essa praça. Fascinavam-me as enormes preguiças que no topo das árvores permaneciam imóveis. Eu também permanecia imóvel por muito tempo olhando para cima esperando em vão o mais leve movimento daqueles animais preguiçosos. No centro da praça tartarugas e jacarés tomavam sol num pequeno tanque. Do lado norte da praça os velhos trilhos esperavam ainda o trem passar. Lá no fundo o lago agitado. Todas as casas dos bairros próximos tinham desaparecido no terremoto de dezembro. O bairro da minha infância, apenas duas quadras da praça não existia mais. Tinham ficado apenas as ruas. Não havia nenhuma casa onde antes se aglomerava uma população alegre. Imaginava as pessoas subindo e descendo as ruas com sacolas de frutas e verduras e nas ruas, a carroça puxada a cavalo. Um homem coberto de preto vendia carvão aos gritos. Nos botecos alguns bêbados tropeçavam nos seus próprios pés.

A fúria invisível da natureza tinha poupado apenas o Palácio Nacional e a velha Catedral. As tartarugas e os jacarés ainda estavam ali. Alheios à algaravia que inundava a praça e que agora se estendia para todos os cantos do País.

Desde abril os guerrilheiros tinham combatido por todas partes às tropas fiéis do ditador Anastacio Somoza Debayle. Com todo tipo de armas, algumas de fabricação caseira, outras tomadas dos próprios soldados de Somoza, e ainda outras conseguidas com o apoio internacional, os guerrilheiros encurralaram o inimigo nos quartéis. Era o povo em revolução, mas não havia armas para todos. O céu tinha sido tomado por assalto. Pouco a pouco a praça foi se enchendo de fuzis que se levantavam no céu limpo de julho.

Pensei que a revolução era uma espécie de mágica. Bastava “tomar o poder”. Derrubar uma ditadura infame. E as coisas andariam por caminhos novos.. Os revolucionários seriam novos seres, justos, e completamente diferentes dos anteriores, dos ditadores e déspotas. Mas não existe mágica. E a revolução se desfez no caminho.

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