domingo, 26 de abril de 2009

CAVANGA

Descobri que saudade tem um sinônimo nica: cavanga. Ainda não sei exatamente a origem da palavra, mas sempre ecoou no meu ouvido, desde menino e ficou em mim como sinônimo da perda, de uma dor inexplicável. Pode-se ter cavanga de um amor que se foi ou de uma geografia inexistente, ou de uma cidade submersa, sepultada pelo tempo ou no caso de Manágua: ”sepultada literalmente”, pelos seus próprios destroços. Manágua foi uma cidade que morreu na adolescência. Melhor: eu vi adolescente, morrer uma cidade adolescente. Era véspera de natal, um dia antes das festas. A cidade estava repleta de luzes coloridas e árvores de natal em todas as casas. A Catedral, no meio da praça, orgulhosa e paciente esperava ingênua, mas confiante da sua eternidade. Era natal, um de seus melhores dias, poderia expressar alegremente tudo seu esplendor. Mas eu sempre me perguntei se ela fingia tudo isso, nos meus pesadelos posteriores, dormindo ainda no quintal de casa, uma idéia fixa rondava minha cama improvisada, pensava que a Catedral não só fingia, mas que sabia de tudo o que viria. Ela ainda sabe disso muito bem. E posso afirmar com certeza. A prova: ela é a única que ainda está erguida, diria, de forma insolente, no meio da praça.
A Catedral foi uma presença poderosa na minha infância. Meu bairro ficava pertinho, a duas quadras, eu ficava impressionado com sua imponência e sonhava com os mistérios que escondia nos seus porões. Meu bairro é inesquecível, no sul minha fronteira era a Catedral e no norte o lago, eram meus limites, fora disso, o território era proibido.
Os nicas, especificamente os que nasceram e viveram em Manágua têm cavanga ou saudades da sua geografia, das ruas da cidade, dos prédios, dos bairros, dos lugares, das esquinas, da vida passeando pelas suas avenidas que não existem mais. Assim, como um amor irrecuperável, um amor que partiu a cidade nunca mais voltará. Os nicas espalhados por todos o planeta levaram na memória um lugar querido que, na distância, todos os dias acarinham, montam e desmontam como um precioso quebra-cabeça. Cada noite ou nas madrugadas insones algum nica rumina bovinamente as lembranças de um bairro, de uma rua, do cotidiano que não existe mais. Talvez isto não seja incomum e faz parte da essência do ser humano que vê seu mundo ruir, ou melhor, que enxerga nisso sua inevitável finitude.
Aquela noite eu dormia placidamente. Sei lá qual era meu sonho. Com certeza era algum sonho com vampiras ou com Alicia, a vizinha de pernas gordas. Até esse momento minha idéia de um terremoto era muito pobre, de um filme japonês, onde a terra tremia sem parar, a terra se abria. Que enganado eu estava. Pouco antes da meia-noite acordei com um forte e brevíssimo tremor. Mas em Manágua as pessoas estão acostumadas, algo cultural, desde minha infância, a qualquer pequeno tremor, saímos para a calçada, levando algumas cadeiras e esperávamos conversando tomando café e pamonha. Se os tremores paravam, como quase sempre, voltávamos a dormir tranquilamente. Mas desta vez não foi assim. Ouvi, no meio do sonho, um estrondo, como se algo tinha se rompido alguma víscera no fundo da terra. Cambaleando de sono saímos correndo para o quintal. A terra tremia e vi no quintal a cerca de madeira dançar como possuída por algum mau espírito. Quando parava de tremer corríamos para dentro de casa a pegar alguma coisa. Assim saquei minha cama. Por incrível que pareça consegui dormir, acho que minha mãe não. Da minha irmã não lembro, mas com certeza dormiu também. A partir daquele dia dormimos não sei quanto tempo no quintal. A cidade tinha desaparecido. Os prédios queimavam. Muitos cadáveres nas ruas, cobertos ou também queimando por causa das epidemias. Faltou água e comida. Nós tínhamos que ir até o corpo de bombeiros para pegar água. Alicia ia junto. Eu tinha um sonho recorrente. Na beira da minha cama, ainda no quintal, se aproximava uma mulher e fazia algum movimento com a mão, como girando, devagar, com um balanço que me acalmava, mas às vezes tinha interrupções e o movimento se desordenava, como quando uma pedra cai numa poça de água calma, se perturba, mas ela continuava e eu dormia em paz. Tenho me perguntado se era uma reminiscência infantil, um refúgio que eu inconscientemente buscava, mas não era Alicia.

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