sábado, 2 de maio de 2009

Os beijos dela numa noite de medo

Para Osmar


Naqueles dias Manágua tremia, mas não por causa de um terremoto. Por incrível que pareça, os tremores de terra tinham parado, protelado seu vai-e-vem, como dando um tempo, um intervalo acordado e mudo. Eu podia sentir o sabor do medo na minha boca. Um sabor impossível de descrever. Eram dias de setembro. O céu tinha uma cor esquisita que pressagiava o que viria. Aprendi a fumar por imitação, por medo ou simplesmente para, junto com a fumaça que se levantava repetir a sensação dos beijos dela. Era um mecanismo poderoso que eu tinha aprendido e que usava nessas situações. Deixava-me imune a qualquer coisa. Pelo menos eu acreditava que era assim. Os beijos dela que eu repetia, naquele medo sólido, pontiagudo, me acalmava, me fazia sentir impenetrável ou cruamente indolor. Era um segredo que eu não compartilhava com os outros. O cheiro da rua entrava furiosamente pela fendas da casa de madeira. Aprendi a escutar os outros sem que falassem, sem voz, apenas entendendo o som abafado das gargantas. O silêncio que vinha da rua me apavorava, não pelo silêncio em si, mas pelo que anunciava, sem eu sabê-lo, mas que imaginava, como tantas vezes tinha ocorrido, em outros momentos, com outros, podia ver minha foto publicada, irreconhecível, com a rigidez do instante, mas com o olhar sereno. Os donos da casa tinham desaparecido ou fingiam dormir em algum lugar. Na reduzida sala da casa Chico iniciava a leitura não sei de que texto. Ele era velho aos 27 anos. Os olhos vermelhos e cansados. Chico tinha nascido no ocidente do país, numa pequena e pobre localidade chamada Mina do Limão. Chegou a Manágua e se tornou um bom orador. Eu queria ser como ele, que eu enxergava como um irmão mais velho. No auditório lotado ele se transformava em um gigante. Agora apenas murmurava. Fazia parêntesis falando de Faulkner e Benedetti, de Sábato, Cortázar e Borges. Como era possível que no meio daquelas condições, de censura e interdição, ele podia falar de literatura. Confesso que eu não conhecia nada e depois, nas minhas impossibilidades, fugia para a biblioteca, para descobrir Borges, mas Manágua continuava tremendo. Não sei quantas horas se passaram. Quando saímos ainda estava escuro. Ninguém ainda na rua. Eu voltei aos beijos dela.

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